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terça-feira, 12 de dezembro de 2023

O PESCADOR ME ENSINOU...


Dezenas de furinhos. Uns quietinhos. Outros a borbulhar. Sinais de vida em minúsculas cavernas à beira mar. Parei pra olhar.

Um pescador surgiu ao lado. Pés enrugados. Rosto rachado de sol e sal. Na mão, um tubo improvisado. De buraco em buraco fazia a sucção.

- Zédazisca, ele se apresentou... Demorei pra entender a autodenominação. 

- Isso se come, seo Zé?

 - Os peixe gosta... Sorriu com os dentes falhos à mostra.

- É pitú?

- Pitú é de água doce, moça. Esse é o corrupto, sorriu. Tem muito no Brasil. Aqui na praia, só alguns. É igual na política, difícil de pegar. Se esperar uns furos eu acho um pra lhe mostrar! 

Aguardei com curiosidade, achando graça e verdade. Na calmaria da praia, um papo bom de pescador. Caça e caçador.

- É dura a profissão? 

- Deus é pai e o mar, meu patrão. De dezembro até março, só dá maré à noite. E à noite eu não venho não. Cato de março em diante. Olha só que corrupto grandão!

Da boca do tubo, no meio da areia molhada saiu o bichão esquisito cheio de pernas e cor rosada. Feio pra danar. O Zé pegou com a mão, me mostrando de perto e colocando num latão. Esse corrupto não faz mal a ninguém. Ajuda a pescar garoupa, corvina, robalo, badejo e Merluza. Quinze reais a dúzia!

Agradeci com um sorriso a aula de pesca artesanal e segui caminhando, pés descalços na água e no sal, lembrando dos buraquinhos na areia, dos corruptos e das risadas pescadas na maré mansa da minha ignorância. 

Eu achando que era pitu. Ele achando graça: - O único Pitu que eu cato no mar, moça... é a garrafa vazia da cachaça!

 

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Sobre a atividade

Alguns municípios estão proibindo a caça de corruptos na praia, devido à sua quantidade estar diminuindo consideravelmente. As espécies mais comuns na costa brasileira são as do gênero ‹Callichirus› (pronuncia-se /kalikírus).


quarta-feira, 15 de novembro de 2023

COM QUE ROUPA EU VOU?


Era uma mala grande e vazia. Aberta em frente de casa. Deixada numa noite fria...

O que eu coloco na mala? O vazio me cavocava. Vou pegar duas calças e uma saia. Colocar bem espaçadas. Ainda vai sobrar espaço. Posso colocar uma jaqueta e um casaco. Não sei pra onde vou. E quem me convidou.

Coloco escova de dentes? Cremes? Sabonetes? Coisas de higiene pessoal? Alguns hotéis oferecem. Que hotel será esse? Não há um bilhete, voucher, nem sinal de estadia. Nada além da mala vazia.

Vou colocar livros. Meu vinho favorito. Acho bom colocar bombons. De licor. E se escorrerem pelos tecidos grudando os vestidos? Levo sabão. Tesoura. Linha e agulha. Alguma coisa que faça costura e remende qualquer estrago. Não sei que horas eu parto.

Que tipo de roupa levar? Será sério o lugar? Vestidos longos, sapatos altos, colar. Ou melhor sandália, camiseta velha e uma almofada de sentar. A mala vazia me olha pedindo pra repensar. Coloco perfumes? Ou sementes naturais? Não sei nada mais. Aonde vou? O que vou precisar?

A mala é muito grande. Cabe grandes travesseiros. Devo levar dinheiro? Cheques, cartões? Ou cartas guardadas de amor? Ninguém a meu lado para dizer. Só a agonia da mala vazia prestes a me enlouquecer.

Vou encher de coisas sem muito pensar. Misturar trecos. Objetos. Uns sem sentido, outros de valor. Um secador, um coador, um diploma, uma nota de cem. Meu coelho de pelúcia também. Roupas íntimas! Pode ser que eu fique muitos dias.

Agora sim, a mala está lotada. Abarrotada. Deixada no mesmo lugar. Eu sigo com o vazio de não saber como e quando vou viajar.

Vida e morte. Ambas são assim. Uma mala que a gente carrega e não leva no fim...

 

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quarta-feira, 8 de novembro de 2023

POESIA DAS PEQUENAS COISAS


Um sopro leve de vento. O soar distante do mar. Uma nota solta de Bach...

Os sussurros do homem e da natureza reverberam ao coração. respiração mansinha. O som dos lábios no beijo, pausas e entrelinhas. Suspiros de compreensão. 

A poesia das pequenas coisas... O som da brisa balançando as folhas do coqueiro. A água do rio deslizando entre as pedras, refrescando a alma por dentro. Pingos leves e perfeitos. Ouvi-los, exige silêncio.

Os bichos também falam. Os insetos pequenos rodopiam ao redor da lâmpada, zunindo até cair. São tontos no seu girar sem fim. Deviam se inspirar nos colibris e borboletas que pairam sobre as flores, silenciosos no jardim.

Quando nos aquietamos, ouvimos os sons mais sutis. Disque-disques. Chiadinhos. Zum zunz, tiriris. A voz das abelhas, zabelês, bichos esquisitos que conversam no ar. Os ouvidos mais treinados ouvem sustenidos ao longe e notinhas fantasmas no ar. 

O som das pequenas coisas. Tão difícil de hoje se ouvir.

Um vento forte tem gemido alto nos últimos tempos. É um uivo faminto. Lobo eólico que chega rodopiando as folhas, tirando as telhas das casas e deixando as almas em desassossego. Rufam os trovões da natureza aflita. O planeta grita em lamento. Um dia foi verde, agora é cinzento. Gelos caem fazendo barulho. 

O Deus-natureza nos envia uma tarefa urgente. Recuperar a Terra e restaurar a paz, para ouvirmos os sons mais ternos e menos violentos. Os sons pequenos.

Porque é no oásis do silêncio, por fora e por dentro que ouvimos a alma em conversa íntima e suave com o coração. 

E quando cessa a fala, ouvimos o melhor dos cantos. Da natureza, poetando.


 

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quarta-feira, 4 de outubro de 2023

UM DIA SEM SALTO ALTO...

O tio Toninho tinha uma Kombi de duas cores. Branca e azul clarinho. Era o sonho da criançada. Servia para levar as mercadorias da fábrica. Atendia os clientes que moravam mais distantes. Às vezes, em cidades vizinhas e fazendas gigantes.
Nas férias, ele resolveu atender o pedido da garotada. Momento raro. Decidiu nos levar até Amparo, visitar um antigo cliente alemão. Fomos em cinco. Os três primos, tio Toninho e a sofisticada tia Zilda, para tomar conta da família.
Tia Zilda era chique. Vestidos longos, salto alto e um cabelo que saltava quinze centímetros da cabeça, sustentado por um laquê duro e perfumado. Frequentava os lugares mais finos de São Paulo e descia a serra para comer no Gáudio, o ponto mais nobre e atraente no litoral de São Vicente.
Na ida, o de sempre. Cheiro de óleo queimado e quente dentro e fora do carro. E as crianças se divertindo com o sacolejo destrambelhado. Lombadas inesperadas levavam nossas cabeças ao teto, afundando o lindo cabelo da tia Zilda em dez centímetros. Que dó. Mas ficava melhor!
Duas horas depois, na venda do alemão, tio Toninho deixou os produtos e pegou o pacote de dinheiro. Ganhamos queijo da fazenda e um pote de mel pro ano inteiro.
A volta que complicou. Um prego enferrujado na pista e o pneu da Kombi furou. Com o carro parado, os três pequenos endiabrados e o parafuso que não queria sair, tia Zilda resolveu sair da pose! No meio da pista ergueu de lado a saia fazendo sinal para algum santo homem parar. Pararam cinco. Só um, com a intenção de ajudar.
Depois do auxílio e da troca demorada, tio Toninho seguiu até o borracheiro. Uma bimboca suja a dez quilômetros dali. O estômago das crianças roncava e a tia Zilda não teve receio. Pegou o facão do borracheiro, passou umas três vezes no vestido azul de veludo e cortou grandes lascas de queijo, colocando mel por cima de tudo.
Foi melhor que um banquete. Lembro do gosto até hoje. E da elegância da tia Zilda, com uma finura maior que a fineza. Nem todo dia... é dia de princesa!


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terça-feira, 5 de setembro de 2023

NO MEIO DAS ÁGUAS...


O rio Una desce a serra para desaguar no cantinho do mar. Escuro. Quase preto. Una. Como os indígenas o batizaram. Suas águas, negras, chegam penetrando lentamente o oceano em faixas escuras e disformes, sem contudo se misturar no verde claro do mar.  

Do alto, as diferentes cores se distinguem. É fácil enxergar. Claro aqui. Escuro acolá. Mas é de perto que o entremeio nebuloso aparece. Ponto turvo. Onde as águas se entranham... Onde o rio não é mais rio. E o mar, ainda não é mar. Nem doce, nem salgado. Meio termo. Sal adoçado. Meio limbo. Meio aflição. 

Que tipo de peixe vive lá? Dizem que as tainhas sobrevivem. Suportam as maiores mudanças. De ambiente. De pressão. Aguentam firmes a exaustão. Certamente irão mais longe desse jeito... Sardinhas à direita. Robalos à esquerda. Homens a pescar.  

Lisas, as tainhas acenam pra cá. Escapam pra lá. Para duramente chegar ao seu verdadeiro habitat! Fico imaginando quantas vezes fazemos esse mesmo trajeto  turvilíneo. Quantos mergulhos em águas nebulosas. À procura do nosso lugar. 

E seguimos, peixes urbanos, contra fortes correntes e sob pressão. Por paisagens que não gostamos. Lugares que não pertencemos. Gentes que não reconhecemos.

Feito tainhas, atravessamos. Ligeiros. Sem nos deixar contaminar. Pois o maior risco dessa travessia, talvez seja se acostumar. E viver, eternamente, no líquido insípido. 

Daquilo que não é rio. Daquilo que nem é mar!     

Sejamos esses peixes. Fortes e valentes. Em frente...



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quarta-feira, 30 de agosto de 2023

VOVÓ É UM ANJO!

Vó Emília virou uma espécie de anjo em minha vida. Eu tinha só seis aninhos quando ela se foi. Tão pouco. Tão muito.

- Vó entrei na escola! Seu sorriso se abriu naquela hora. Quando a mente já não lhe dava mais entendimento, entendeu com o coração. Não falou meu nome. Apenas me acolheu e eu segurei sua mão. Tudo ali nos bastou. 

Depois da sua partida, uma presença volátil me rondava. Nas horas de angústia, em silêncio, eu lhe falava. Na água do banho, sob o chuveiro. No vão dos pensamentos. No arrepiar dos medos. Eu imaginava seu colo e o meu repousar sereno. Era a paz que acalmava. E o sopro que me empurrava. 

Da vó Emilia herdei muita coisa, sem muito entender. Ela gostava de comprar casas e depois vender. Comprei algumas. Coisa de português. Segurança, talvez.

Com os anos fui me desprendendo. Vendi as casas, apartamentos. Agora me basta um lugar pequeno. Herdei seu queixo, sua força e o grau alto de dureza. Vó Emilia trabalhava sem tempo de sossegar. Também tenho esse fundo de ferro. Difícil relaxar.

No entanto, eu dormia suave em seu colo quentinho. Sentia seu perfume. Ouvia o seu cantar. 

Hoje ouço sussurros no vento. É na voz dos anjos que ela entoa seus conselhos.

Eu tinha seis anos. Tão pouco. Tão muito. Não sei se a estrada é longa ou breve até lhe encontrar. Mas passe o tempo que passar, nossa conversa vai terminar.

- Porque aquele dia, vó, eu só queria contar como foi o meu primeiro dia de escola... você ainda lembra? 

Posso te contar... em silêncio agora?

 

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terça-feira, 22 de agosto de 2023

JOGO COMPLICADO DO AMOR


Às vezes está em nossas mãos o tempo inteiro. Às vezes, nas mãos do parceiro. Começa a trama. A delicada cama, feita de barbante. Entramos para brincar. Depois, o jogo começa a esquentar. Dedos por baixo. Dedos por cima. Num balanço ágil e solto. Fácil de realizar. Com o tempo, as mãos vão mais devagar.

O polegar ajuda. Às vezes se inclina. O parceiro reflete e imagina. Olha pelos lados. Pelos cantos e por cima. Faz o movimento com desenvoltura. Criando nova figura. E passa sua vez.
O jogo vai ganhando dificuldade. Não importa a idade. A experiência conta mais. Os pais passam para os filhos. E os filhos, muitas vezes ensinam os pais. O lance é estar sempre pronto para sair das ciladas. Inventar outros laços. Sair dos embaraços. 

Tão lúdica essa brincadeira. A mais provocadora dos jogos e brinquedos que já tive. Mais amável que War ou Detetive. Mais complexa que dominó ou ligue-ligue. 

Eu não sabia o seu significado. Sigo compondo o aprendizado. Eu e meu parceiro atados. Nossos dramas. Nossa trama. Nossa cama. Cada qual com seus enredos e anseios. Às vezes ganhamos. Em outras, perdemos. Nem sempre achamos saída. Mas de algum jeito aprendemos. 

Esse jogo engenhoso e sedutor, com erros, acertos e ilusões, bem poderia chamar...
amor a dois!



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foto @soudessaépoca

Para saber mais sobre a brincadeira "Cama de gato"
https://www.coisasdojapao.com/2019/06/ayatori-cama-de-gato-e-brincadeira-com-barbante-tradicional/

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sexta-feira, 11 de agosto de 2023

A ESCOLHA DOS IRMÃOS...


A cachorra era branca. Mas quase nunca estava assim.
Andava sempre cinzenta, da poeira que se depositava no quintal. Época que não havia pet shop e banho de cachorro era no tanque mesmo. Com água de torneira e um bom sabão. Antes de terminar, ela pulava magrela e ensopada, escapando de nossas mãos! Chacoalhava os pelos pelo quintal. E depois rolava no chão feito um cão vagabundo.
Era a nossa Sissi. Uma lulu toda branca com um olho preto. Lembro do dia que fugiu de casa. Talvez por rebeldia, para curtir a liberdade. Ou, puro instinto de maternidade que já alto latia. 
Eu e meu irmão passamos dias em desespero até que, depois de exatos sete dias, ela entrou correndo pelo quintal abanando seu rabo feliz e felpudo. Voltou! Agora, cinza chumbo. E prenha!
Depois de algum tempo, nasceram Brisa e Brasa. Um era preto com focinho branco e o outro todo branco. Bebês alegres e chorões derrubando tudo por onde passavam. Era comida, potinho, latinha e xixi por toda a casa.
Passada a euforia e no auge da nossa alegria, o poder materno decretou a sentença - Não dá para ficar com os três! Vocês terão que escolher.
A escolha é sempre dura. Vem cheia de culpa e amargura. Escolher um, é deixar o outro. É comparar amor. Jamais saber o que teria acontecido, se o outro tivesse escolhido. A escolha corrói. E dói fininho. Ainda mais, para dois irmãos pequeninos.
Naquele momento de angústia, em prantos e desespero eu falei baixinho: - Brisa! Meu irmão, esperto, disse rapidinho: - Brasa! E minha mãe retrucou meio brava: - Não é essa a escolha. Ou ficamos com os filhotes ou com a cachorra!
Sorrimos aliviados, abraçando fortemente a doce Sissi que sacudia o rabo em nossos braços. Quanto aos filhotes, doamos os dois para a vizinha ao lado. Em mágica solução. Todos os dias, a família se reunia. A mãe, os filhotes e os dois irmãos.
Crianças pequenas, encontram grandes soluções!   

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quarta-feira, 2 de agosto de 2023

MAMMA MIA, CASO DE FAMÍLIA!


"América, América, lá se vive que é uma maravilha. América, vamos ao Brasil com toda a família"... Eles chegaram ao som da canção do imigrante italiano, depois da longa jornada de vinte e tantos dias num navio carregado de gente e sonhos embarcados.

Juntaram-se no bairro do Belém, numa vila pequena onde todos se conheciam e participavam com alegria da vida alheia... A nona Rosalia falava alto que saltava a veia. A Bela e o Giácomo não se importavam. Jogavam buraco, cacheta ou tranca na mesa de toalha branca e belos bordados. No prato ao lado, pedaços de queijo, vinho tinto seco e o baralho. 

O tio Bepo tinha fama de muquirana. Nunca apostou a dinheiro. Passava o dia ocupado filando algo no bar ao lado. Sempre na cozinha, a Zia fazia talharine ou penne, “Mangia che te fá bene”, e empurrava um doce da tigela pela nossa goela. Tio Dante reclamava de tudo. Se alguém dizia que sim, ele apostava que não. Sobrava palavrão em italiano e gestos com “le mani”! Caspite, Figlio di un cane. 

Ao meio dia na janela, a família parava para ver a prima Estela. Loira, alta e bela que acenava com sua mão de luva branca e seguia pelo Belenzinho, espalhando sorrisos pelo caminho. O nono se derretia. A nona reclamava. O capo maldosamente sorria.

Tudo na mesma vilinha, em casas vizinhas, mais dois cachorros, uma macaquinha, um pombal e galinhas. Eu não falava ainda. Só ouvia e mal compreendia aquela família engraçada, italo-brasileirada de coração grande que sentava as tardes na calçada e se emocionava ouvindo novelas e velhas canções. 

O retrato da grande família resta na parede. Na foto, estão calados e serenos. Seriam os mesmos? Olho cada um deles, lembro da voz e acho graça. Casei, formei nova família. Juntei outras gentes. Gerações diferentes. Agora mais tecnos, quietos e gentis.

As festas são mais comportadas. Na mesa não se joga nada. Ninguém atropela ninguém. Bebemos água e comemos saladas. A casa é mais tranquila e equilibrada. 

Evoluímos a raça? Ou... perdemos a graça?

 

 

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domingo, 23 de julho de 2023

MULHERES, SAIAM DA GARRAFA!

Eu gostava da geniazinha que entrava na garrafa e se confinava entre carpetes e almofadas rosa-lilás. A sala cheia de mimos e conforto. Ela poderia trazer livros, presentes caros e tudo que quisesse num cruzar de braços. Mas ficar presa com uma rolha no topo da garrafa era inaceitável. Muitas vezes, de castigo pelo amo! Que gênia atual quer um amo? Eu gostava da Jeannie. Não pensava naquele argumento insano.        

Se os personagens das séries antigas saíssem para um bate-papo hoje em dia, quanta discussão daria... Daniel Boone amigo, curto você e seu rancho. Suas frases antigas são tão puras... - te encontro no paiol, daqui a seis luas! Mas esse seu chapéu de pele animal. Que ideia cruel. Anos na sua cabeça que até cheira mal. Tire o chapéu, Daniel. Sua virilidade continua. Os bichos agradecem. Continue seguindo a lua.

Eu vibrava com os Pofs, Zapt, Vupt, Boing do Batman e Robin. Sabia que a luta era fajuta. Mas daria um conselho. Todos sabem quem é Bruce Wayne. Cara de um, focinho do outro. Arranja outro óculos ou uma cicatriz no rosto. Em verdade, Batman, até minha vó sem lentes sabia sua identidade!  

Para Samantha, a feiticeira, também daria uns toques práticos. James é chato. De vez em quando, faça um feiticinho inofensivo e barato. Um prato pronto pro almoço, sem ter que cozinhar. A casa limpinha sem ter que arrumar. E aquela orquídea seca no vaso, faça num torcer de nariz, novamente florescer. James não precisa saber.

As mulheres estão saindo da garrafa! Jeanny e Barbie tem novos formatos. Anti modelos. Mais diversos. Mais libertários. Nenhum major poderá mais prender. Há um mundo mudando lá fora. Ressurgimos mais humanas e sem escolta. 

Só se a gente quiser... pra garrafa a gente volta!

 

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sexta-feira, 21 de julho de 2023

O BIFE!



O casarão era enorme. Como tantos na Avenida Paulista. Muros brancos e um portão alto de ferro trabalhado, no estilo dos grandes palácios. 

Um funcionário abria o portão e seguíamos por um caminho que cortava todo o jardim até a escada de mármore da entrada. Havia um brasão da família na parede rosada. De metal, com uma coroa e duas espadas. Embaixo escrito, Barão do café. Eu não sabia o que significava aquilo. Não me impressionava. Achava o desenho bonito. Depois, vinha outra porta de madeira e estávamos na sala, com poucos móveis espalhados, quase vazia, que ecoava...   
                               
Tia Clarice ao fundo tocava lindamente seu piano branco. Olhos fechados, nem percebia os netos que cruzavam do seu lado com risos altos. Quando dava a última nota, ela voltava à tona. Abria seus olhos como quem acordasse de um sonho, ressurgindo para a vida real. Temos visita! Que lindas. 

Minha mãe sorria e elas se abraçavam no meio do salão. Logo seguiam para a copa tomar um café. Eu despistava, demorava um pouquinho e sozinha, sem que ninguém me visse, sentava no banquinho ajeitando a saia como fazia a tia Clarisse. Eu tocava... o bife! 
Ninguém me ouvia, nem as crianças no jardim, nem as duas amigas, entretidas em conversas animadas sobre livros e a vida. Eu ali sentada era a maior pianista do mundo. 

O piano foi sempre presente em minha vida. Não por mim, que me dediquei a instrumentos menos clássicos e menores. Mas pela família, como uma espécie de trilha, às vezes feliz, outras vezes melancólica, acompanhando nossas histórias. 

Meu irmão tocava, em casa, as primeiras canções de Tom Jobim. Lembro da graça e a elegância com que ele intercalava as pretas e as brancas. Eu esperava, sempre no final, o convite. Vamos tocar o bife? Quatro mãos! Eu e meu irmão. E junto com as notas duplas e divertidas, minha alma tocada se desdobrava e acompanhava os dois dedinhos que martelavam alegres e pequeninos. 

Minha mãe contou uma espécie de plano. Seus pais e ela foram convidados para ver meu pai, jovem, tocar piano. Era uma valsa, Strauss, se não me engano. Ele tocou e fisgou seu coração. Depois, meu pai dela se esqueceu. Era cena apenas. Minha mãe, com o tempo compreendeu.

O piano continua nas minhas memórias simples de família. 
Saudade do meu pai, do meu irmão, tia Clarice. 
E de mim mesma, quando apenas tocava... o bife!

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segunda-feira, 10 de julho de 2023

O TERCEIRO AMOR...


Foram anos de convívio. Filhos, conflitos. Rosas, risos, espinhos... Enfim, eles decidiram. O velho casal de amigos com trinta anos percorridos resolveu se casar. Com troca de alianças e uma mesa com toalha branca servindo de altar. Juntos na festa, a família completa, avós, primos, pets e netos e netas. 

Na cerimônia pequena e modesta os convidados teciam longas conversas entre goles de champanhe e licor, quando o locutor, que não era padre, nem pastor, profetizou o amor.  Para mim, eles são três! De onde vem a graduação não sei.

primeiro amor tem a cor da paixão. Feito um bólido. Tórrido. Chega com gana e fúria. Misturando sexo e aventura. É o amor impulsivo. Atração sem juízo que não sossega. Depressa se vai, assim como chega.

O segundo amor, completou, é o amor sólido. Construtivo e concreto. Tempo de comprar o terreno e erguer o teto. Ganhar dinheiro. Lamber a cria. O amor que enfrenta crises, deslizes, noites em branco e solavancos. É amor maduro e sereno. Resiste, se não for pequeno.

Vem o amor terceiro... O derradeiro. Chega na idade da contemplação. Muito já se fez. Muito aconteceu. A dor nos joelhos veio. Os cabelos embranqueceram. Os filhos casaram. O terceiro neto nasceu.

A casa ficou vazia. Os remédios juntinhos, numa vasilha. Sobrou o... você e eu. O último amor apareceu. Maior e mais profundo. O amor que cresceu. Do outro, o incompreensível compreendeu. Nada mais surpreende. Nada mais julga.            
É o terceiro amor...  o amor que cuida!


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quarta-feira, 5 de julho de 2023

AVE SOZINHA. AVE MARIA!


Branca e emplumada, ela caminhava sozinha na praia. Fitava o céu e o mar enevoados.

 Deve ter escapado do bando e veio dar umas bandas pelo chão. Pisava delicada nas areias fininhas e em algumas migalhas de conchinhas. Ia devagar, mansinha. Marchando em contemplação. 

Eu era aquela ave solitária na praia. Sorvendo o silêncio e a beleza. Seguia com ela serena e sozinha. Retilínea. Pernas em marcha, esticadinhas. Água e sal entre os dedos, sentindo o prazer egoista em segredo.

Seria uma garça, gaivota, albatroz ou pelicano? Às vezes me engano com as aves que voam sobre o oceano. Era um ser alado somente, na palidez da minha visão, sem maior classificação. Batizei-a Maria. A ave Maria. O divino ali cabia.

Naquele momento sem gente, o vento guiava minha mente por mares distantes e verdes. Eu velejava sem velas na suave atmosfera. Um balanço manso da alma em terra. 

A ave não me via. Eu me via nela. 

O sol ardente de repente apareceu. A ave solitária abriu suas asas, agora aquecidas e mergulhou no mar.  A seguir, num ímpeto aéreo e belo emergiu. 

O seu arrepio de penas me sacudiu.

Cheguei mais perto sem ela perceber. Tinha ar de contente. Vi um bico sorridente.

O breve momento foi suficiente. Desmontou a cena. Voltamos a ver gente, gente e mais gente.

Ela voou. Eu voei também.

 

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domingo, 2 de julho de 2023

ME DÊ UM JARDIM...

Se pensar num presente para mim... me dê um jardim.

Não hesite. Acredite. Um jardim seria o melhor presente. Pode ser pequeno. Mas que tenha flores suficientes. Coloridas. Pode ter orquídeas, sem vergonhas ou margaridas. Um ou dois arbustos, pedriscos e musgos. Mas que venha com boa terra. Pode ter húmus. Adubo animal. Evite aqueles pozinhos artificiais.  Minhas flores costumam usar coisas naturais.

A grama não tem muito que pensar, escolha a São Carlos ou a esmeralda. Fácil de tratar. Basta sol e água. De vez em quando tirar um bocadinho de praga.

Se for me presentear com um jardim... Não pense duas vezes. Vai alegrar meu coração. Se for pequeno, levo na mão. Se for muito grande, eu trato de arranjar um caminhão. Não rejeito jardins de modo algum. Sempre sei onde colocar. E não precisa ter pomar. Bastam as flores e as abelhas já virão. Junto com elas o beija flor, os grilos e muitos insetinhos escondidos na grama pelo chão. Quero o combo completo com tudo que for e flor.

Quando for me dar um jardim. Fique à vontade. E muito tranquilo. Sei da responsabilidade. Rega, poda, conversas ao pé do ouvido. As plantas entendem o que exala, além da fala.

Se for me presentear com um jardim, não esqueça que meu aniversário é em julho. Inverno, de céu cinzento. Um frio intenso de trincar os dentes dos anões do jardim e colocar paletó nos gnomos e querubins. Então aproveita na hora da compra e traz um pouquinho de sol concentrado pra mim. 

E um outro tanto, entre duas nuvens... pro meu jardim!


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segunda-feira, 26 de junho de 2023

NÃO VOU ESTRANHAR O CÉU...




Não vou estranhar o céu. Está ficando um tanto parecido com o paraíso. Tem chegado gente de muito prestígio. Pelo menos, pelo meu crivo, cultural, pessoal, esportivo...

Já tinha um bocado de gente fina. Em cada canto, alguém por quem eu derramei meu pranto, meu canto e tenho tanto à agradecer. Alguém por quem rezei e chegou lá celebrando. Senna, com a bandeira na mão tremulando. Pavarotti, estremecendo as nuvens com seu fortíssimo canto. Elis Regina, Cazuza, Cauby, Elza, Ângela Maria e agora, o Aguinaldo.

Não vou estranhar o céu... imagina! Tem numa esquina Clarice, Drummond, Suassuna, Coralina. Coisa de Deus, poesia pura. Tem Cecília, Machado, Graciliano, Manoel de Barros. Veríssimo pai. Ah, terei infinitos dias para ouvir suas histórias, que agradam agora até Nossa Senhora.

Na praça de esportes celestial, Garrincha, Zito, Carlos Alberto e Telê. Cruyff, Euzébio, Puskas e Pelé. Só olé. E lá, a palavra não enrola. Falam a língua dos deuses da bola. Chegou também Kobe Bryant, veio com a filhota e ficam encestando nos arcos da glória.

Não vou estranhar o céu... Tem até nuvem de samba com Carmem Miranda. Depois veio Beth Carvalho e foi recebida por Clara, Ataulfo e Noel. Chegou a Marília Mendonça. Chegou de avião, antes da hora prevista. Deve ter sido bem acolhida.

E vem chegando gente todo dia. O último baiano que eu lembro foi o Moreira. Depois chegou Gal, no mesmo dia que o paulista sertanista Boldrin. Quantas noites eu ficaria sem dormir, ouvindo os dois cantando e proseando nos bancos celestes dos jardins.

Quincy Jones mal chegou e já deve estar produzindo o Michael, Sinatra e até os brazucas Erasmo e Ritinha. Músicos de primeira linha.

Ziraldo, o velho maluquinho também está lá. Boa praça. Deve estar "caricando" os amigos. Ilustrando o céu com sua graça. 

Não vou estranhar o céu... Está ficando muito familiar. 

Já tem meu pai, mãe, tios, tias, avó e irmão, que estão por lá! E aquele meu receio de bater com as botas? Ir pro beleléu?

Isso já foi também. Não vou estranhar o céu. Aqui é que ando deslocada... 

nesta cada dia mais desvairada torre de babel!


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sábado, 10 de junho de 2023

A ÚLTIMA CHAMA DE SÃO JOÃO...

Noite de fogueira. Depois da chuva forte da semana inteira. Sacamos do armário os velhos chapéus de palha e roupas remendadas, aquecidos pelas lembranças das festas da infância. A nossa chama estava viva.

Os vizinhos da rua recolheram as toras de madeira nos terrenos vazios, deixando numa espécie de quintal de teto coberto. Três dias seriam um bom tempo para o secamento.

As bandeirinhas em papéis de seda lembravam Volpi nos postes, nas árvores, num alegre ziguezague. Rua fechada. Carro nenhum passava. Havia um clima de interior. Divisões de tarefas nos pratos da estação. Maria, caldo verde, Tereza, o milho, Tio João, o quentão.

Sábado veio e o céu anoiteceu. A noite caipira foi se enchendo de estrelas. São límpidas as noites frias de inverno. Brilhantes, como se Deus tivesse lavado as estrelas e pintado a lua de um branco fosforescente.

No meio da rua, a fogueira armada. De quatro em quatro, as toras empilhadas e ligeiramente úmidas davam certa apreensão. Só o fogo ardente daria vida à calorosa atração.

Começaram as tentativas. Um fogo pálido surgia e sucumbia. Álcool, abanos, gravetos fininhos. Nada adiantava. As crianças decepcionadas começaram a brincar de bola. Outros não ligaram, bebiam e conversavam. João pegou a viola.

Às duas da madrugada não havia mais nada. Nem gente ou comida. Nem fogueira e criançada. Sentamos resignados na frente das toras ainda inteiras e a viola tocou a última moda...

De repente um clarão de arrepiar. Estalos, crepitar. A chama forte começou levantar. A luz do fogo que hipnotiza. Ígnea viva que queima os afoitos. Acendeu os sonhos dos poetas e dos loucos.

Ficamos olhando a fogueira até o dia clarear.

Mas muitos não viram. Dormiram.


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segunda-feira, 5 de junho de 2023

SEGREDO NO OLHAR


Olhei seus olhos. Vi pontinhos.

Seriam três de reticências? 

Desviei o olhar                            

com medo de não ver a certeza. 

Lá dentro, não me encontrar.


Olhei seus olhos. Vi pontinhos.

Seriam passarinhos? 

Voando? Voltando pro ninho? 

Debandariam assustados  

num olhar arregalado.  

 

Olhei seus olhos. Vi pontinhos.

Pretinhas jabuticabas? Sementes de maracujá?

Lançadas na pupila côncava   

que acolhia e semeava

em seu doce curvar.

 

Olhei seus olhos. Vi pontinhos.

Agora eram estrelas. 

Planetas. Meteoritos. 

Meus olhos se perderam 

naquele vão infinito.

                                                             

Moveram-se, enfim, os pontinhos. 

Loucos elétrons girando

numa órbita de amor particular. 

Vi dois seres aflitos                

Prestes a colidir 

e se reintegrar.


Iris e Osiris?

Eu e você?

Eram divinos.

Dançaram e se amaram 

na beira do seu cristalino!


                                        Inês Bari


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