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quarta-feira, 17 de maio de 2017

A TRALHA


Todo mundo tem aquela roupinha... Que não dá, nem joga fora. Aquela que é a nossa cara. E se não pegasse tão mal, a gente usava todo dia. Toda hora. Aquela roupa amiga e usada, às vezes amarrotada, que acomoda tão bem a gente.
É peça já formatada. Amaciada. Que nos aconchega e traduz. Por fora e por dentro. Num dueto mais que perfeito! Nem sempre é a mais cara. Na maioria das vezes, é aquela  velhinha que encaixa certinha no corpo e na alma.
Tive roupas que marcaram várias etapas da minha vida... De criança, era uma calça vermelha que eu usava todo domingo. Ninguém mais aguentava. Acabou sumindo. Na juventude, uma calça jeans desbotada com bolsos coloridos, que combinava com o estilo folk e com meu violão, sempre comigo.
Hoje, uma calça branca meio solta, meio folgada, me representa. Já foi nova. Agora, clássica somente! Uso exageradamente. Já não ligo para o que possam pensar. Chegou a idade onde não preciso explicar. Posso usar. Abusar. Sem me preocupar!  
E como as roupas marcam as pessoas... A gravatinha do Jô. Os terninhos da Onassis. Os chapéus da rainha. As golas do Elvis. E por aí vai.. Mas para mim, as roupas mais velhinhas é que são inesquecíveis. Quando passei a dividir os espaços, os sonhos e a minha vida com alguém especial, tinha uma camiseta velha, tamanho gigante que a gente disputava.
Era ótima pra dormir. Cabiam pernas e braços. Ousados. Unidos. Espalhados... Além de todos os sonhos de um casal enamorado. Era branca e vinha escrito em cor vinho “A tralha”. Quem achasse primeiro, pegava e ia dormir. Vingado e feliz!
Que roupa boa era aquela... Uma camiseta velha! A deliciosa, tralha.

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quarta-feira, 3 de maio de 2017

DESAPARECIDA! NA ILHA...


              
Podia ter escolhido qualquer uma. Afinal, eram todas iguais. Escolhi a mais fina e comprida. Esbelta. Com a classe imperial das palmeiras. E uma ligeira inclinação para a direita, vista de frente da areia para o mar... 

Era ela a minha árvore. A escolhida. Sabe se lá porque cismei de adotar aquela árvore, que para mim se destacava no meio da Ilha Urubuqueçaba, um relicário da natureza no disputado pedaço do litoral. Era confortável olhar para a ilha e saber que a minha árvore estava lá. Esguia e altiva. Toda vez que eu passava de carro, com a urgência urbana de quem corre sem grandes motivos. Ou quando simplesmente caminhava pela areia e a avistava de pertinho. A minha árvore! Firme, forte, verdinha...

Um dia de maré baixa, cheguei ao pé da ilha. Bati com as mãos nas pedras como quem conquista um continente... e olhei para o alto! Nunca a tinha visto assim. Ângulo diferente. Ar de grandeza. Já estava adulta. Temi pela sua soberba, mas logo pude ver nas jovens folhinhas, a mesma ternura e inclinação. Humildade e gratidão. Continuava minha... 

Mas como tudo que é mortal, o tempo traz, o tempo leva... Foi numa segunda-feira. Olhei para o alto da ilha e a minha árvore não estava mais lá. Procurei com os olhos aflitos e o coração apertado. Mas, não. Havia uma fenda em seu lugar. Uma grande fenda no topo da ilha. Muitas árvores devem ter sucumbido lá. Raios? Humanos? Erosão? Fúria de Zeus? 

Só sei que a minha árvore partiu. Como tantas outras que me encantaram... o meu limão cravo, a árvore de kinkan e até o chapéu do sol que o vizinho, imperdoável, derrubou.... Ela se foi. Deixando saudades...

Agora se junta a terra de onde veio e simplesmente semeia outras árvores que vão surgir, iguaizinhas... ou melhor, parecidas. A minha árvore era única. A escolhida! 

Ninguém sabia que era minha. Eu sabia.
  

                                     Fenda/Urubuquecaba     fotos: Célia Loriggio
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