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quarta-feira, 27 de abril de 2022

ESCADA DA INFÂNCIA...


Eu tinha mudado para um belo apartamento numa famosa avenida de São Paulo. O único no prédio que tinha dois quintais. O da frente e o de trás. Sala imensa. Um sofá branco, estante com livros de filosofia e um piano no canto que me dava certa melancolia.

A nova realidade não entrava pelos meus poros como a poeira e a fumaça dos carros que passavam na grande avenida. Minha alma de criança ainda brincava modesta, feito a casinha simples e honesta deixada pra trás. E agora eu tinha dois quintais. O da frente e o de trás!

No quintal dos fundos meus sonhos corriam soltos. Lá eu tinha o mundo. Uma bola. Um chão pra escorregar. E uma escada colada ao pé do muro pra subir e sonhar. 

O paredão separava minha casa de uma espécie de cortiço. Muitos imigrantes se instalavam neste tipo de moradia. Em cada quarto, uma família. Dez, doze pessoas. Enquanto não conseguiam melhores condições, dormiam empilhados, sem camas, só colchões. Era o retrato do bairro do Brás, anos atrás.           

Eu chegava do colégio e almoçava. Antes das tarefas, pegava a bola e brincava. No quintal de trás...

Um riso de criança do outro lado do muro roubou minha atenção. Chamei e ninguém respondeu. No dia seguinte se repetiu. Escalei a escada e olhei do alto do abismo, o garoto de olhos singelos. Sem chinelos. Só de calções. Dei lhe um sorriso. 

Brincava sozinho com uma espada de vassoura improvisada e quando me viu se escondeu. Joguei a bola por sobre o muro e subi na escada para ver sua tentativa atrapalhada de me devolver. Chuta forte, menino! O franzino, enfim conseguiu! Sorrimos. 

Durante meses dividimos as tardes e as brincadeiras. Eu de um lado e ele do outro. Nem ousávamos nos encontrar de outra maneira. Havia a vida. Realidades distintas. Um muro maior e invisível. Quase intransponível.                             Até minha mãe me matricular à tarde nas aulas de piano. Nunca mais brincamos. O pequeno amigo começou a trabalhar. Lustrar e engraxar.

Deve ter ficado triste. Eu fiquei. Eu não sabia seu nome, nem ele o meu. Éramos duas crianças. Vizinhas, felizes, em flor. 

E um muro alto e difícil. Mas não impossível de transpor!


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terça-feira, 19 de abril de 2022

MEU ANJINHO ATRASOU...

Que dia, diacho! Eu virava para todos os lados. Não pregava o olho. E amanheceu um dia xoxo. Nem ensolarado, nem chuvoso. O pão amanhecido que coloquei no fogo queimou um dos lados. Raspei com a faca, ruminando o gostinho de fundo amargo...

Caminhei com passos atabalhoados para o jardim, na esperança de me queixar com um passarinho. A borboleta amarela e preta se refazia num cantinho. Tinha perdido dois dos seus olhinhos. Uma das asas abria esfiapada. Não sei  se ela se lambia ou se lamentava tremendo sozinha e desolada. Que dia, meu Deus!

Segui entortando pelo caminho e fui me sentar no banquinho em frente ao lago do condomínio. Sentou um senhor, meu vizinho, bem juntinho. Desviei o olhar tentando viajar solitária nas águas e ele começou a desfiar seu rosário de mágoas... A mulher com arritmia, o gato que mia, a dor insuportável na bacia... 

Meus olhos continuavam no lago esperando algum afago na calmaria. Paz sem falatório. Um peixe pulando. Uma flor boiando ao acaso. E o senhor continuava falando pros diabos. Dei-lhe um beijo carinhoso inventando uma desculpa e retornei ao jardim...

Os quero-queros gritavam aflitos. Os tucanos rondavam seus ninhos. Prevendo a possível tragédia, sai correndo com minhas frágeis pernas tentando em desespero voar. Consegui apenas gritar. Grito de mãe aflita protegendo a cria. Os tucanos partiram... Meu Deus, que dia...

Só no fim da tarde, o cinza escuro do céu foi se dissipando e um sol tímido  apareceu. Chegou meu anjinho. Com as asas trêmulas e cansado pra dedéu. Sentou-se do meu lado... Tive um problema duro pra resolver. Por isso, hoje eu atrasei!

Entrelacei meus braços em suas asas cansadas e nos confortamos, sentados lado a lado. Eu bem percebi!

À noite, já mais calmos, dormimos... ao som de suaves violinos!

 

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terça-feira, 5 de abril de 2022

A LÁGRIMA NA JANELA...


Era gelada a madrugada. O calor da nossa respiração embaçava o vidro da janela do quarto. Não se via nada do outro lado. Só o fundo escuro, o vapor e um certo enredo místico de amor...

Lá fora, a vida silenciava e meus olhos vivos estalavam vivos e sem sono, num feliz abandono. De repente, um clarão na minha testa! A lua entrava de penetra pela fresta da outra janela. Alva. Branca. Clarão iluminando feito um sol no quintal. Nunca vi nada igual. Ali, ela achou seu lugar e decidiu ficar.

Fiquei acordada duas ou três horas na louca madrugada olhando a lua que não queria ir embora. Já tinha passado da hora. Eu não poderia dormir agora. Ela queria encontrar o sol que do outro lado já se aprontava, mas não aparecia. O céu clareava. A noite ia virando dia. E ficaram os dois no céu ao mesmo tempo! Um em cada canto. Eu os olhava com olhar atento de espanto. Talvez fossem amigos distantes. Quem sabe, tenham sido amantes. A lua só queria dar uma espiadinha. Um oi de luz já seria o bastante...

Não teve jeito. O sol subiu com tudo que tinha direito, abriu o novo dia e a lua, apaixonada e pálida, foi desaparecendo. Fiquei acordada até que sumisse de vez, deixando a sombra enevoada de quem esteve ali, por muito tempo parada. 

Talvez ela tente amanhã encontrar o sol novamente na fria madrugada. Lunática! Não irá conseguir jamais, salvo uma hecatombe! Melhor não pensar, nesses dias esquisitos de hoje. A cena linda e triste apertou meu coração. 

Olhei o vidro embaçado da outra janela, me deparando com a lágrima condensada e gélida que rolou. 
A janela, emotiva, também chorou...


*                             *                                   *                                      *



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