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quinta-feira, 3 de julho de 2025

NO FUNDO DA GAVETA...


Eu procurava minha bandana. Lembrava de ter guardado naquela gaveta. Não era original, mas dava um ar de Janis Joplin, em Woodstock. Eu queria isso, uma pitada de rebeldia, na minha fantasia.

Mas o achado mais devastador foi o interior daquela gaveta esquecida. Aquela do meio do armário. Que eu sempre abria só até a metade. E à bem da verdade, eu via somente a parte da frente. Onde estavam as meias de seda que eu usava nos invernos gelados. Todas, com um fiozinho puxado. 

Fui abrindo a gaveta com cuidado. Mãos um pouco frias. Parecia um movimento interno. Quase gástrico. Uma espécie de bulimia. Trazendo de volta coisas não digeridas. Peças guardadas com datas vencidas. Muito bem escondidas. 

Depois das meias, saltaram três sabonetes. Devem ter sido sachês perfumados. Ganhei do namorado. Seriam verdes ou azulados? Agora eram translúcidos, inodoros e amassados. 

Mais no fundo, encontrei uma luva. Minúscula. Mal cabia em meu dedo mindinho. Devia ter uns cinco aninhos quando ganhei da minha tia. Lá estava ela. Com seus dedinhos de sono e incontáveis anos de abandono. 

No final, as lingeries. Duas cintas-ligas! Nunca usadas. Uma violeta. Outra cinza! Os botões não fechavam. Tirei da gaveta e estavam grudadas em um corpete. Bonito. De renda preta. Ainda na moda. Se eu usasse. Se eu soubesse que tinha. Se eu lembrasse da gaveta... 

Eu nem sabia mais o que procurava. Achei uma faixa azul bacana. Poderia servir, ao invés da bandana. Mas foi no fundo da gaveta, que encontrei a ironia. Uma peteca de penas coloridas. E, na base almofadada, um bichinho sorrindo com a frase: bem-vinda! 
 
Era, atrás das fantasias — a minha criança, lá no fundo, escondida. 



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quarta-feira, 18 de junho de 2025

A PAZ DO BANQUINHO...

                                                              

Preciso, urgente, de um tantinho de paz. Uma paz quietinha. Miudinha. Num lago meio choroso. Com um banquinho branquinho para me sentar em abandono. 

De criança eu buscava as pedras mais roliças e chatas. Alçava o braço para trás e lançava. O golpe ia rente à água e a pedra seguia ligeira, pulando na superfície. Uma, duas, três vezes, quicando. Pai, mãe, filho e filhas! O lago aos poucos ia se agitando.

Menina maluquinha, eu voltava e lançava novas pedrinhas para formar a grande família. Nunca conseguia. A cortina de água inerte e calma do lago respondia com ondas pequenas. Círculos que saiam do ponto do contato e se estendiam em grupo de ondas suaves até a borda final. Logo o lago voltava ao seu estado pacífico natural.

Sinto falta da criança pedra-saltitante que eu era. Um certo cansaço me alcança. Os homens e as fortes pedradas da caminhada criaram ondas gigantes em minha alma. A violência nos ronda. O mundo, às vésperas de alguma guerra tonta. O tempo e a chuva deslizando pelas frestas. A Terra reclama. Caem gelos e perigosas pedras.

Achei enfim o banquinho. Branquinho, no lago calmo perdido no meio do mato. Sentei sem nada nas mãos. É curto o meu tempo e urgente o meu amor. 

Olhei as árvores e o céu quietos e cúmplices da minha paz. O manto da noite desceu com um ar de conclusão. Tudo seguiu calmo, só as cigarras entoavam uma canção.

Si si si si... silêncio.



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A brincadeira de quicar pedras na água é levada a sério por muita gente. O stone skipping tem até uma associação norte-americana e recorde mundial reconhecido pelo Guinness Book... 88 pulos!

https://gizmodo.uol.com.br/pedra-quica-88-vezes-na-agua/

 



segunda-feira, 9 de junho de 2025

SILÊNCIO A DOIS...


Não sei se passaram dez ou quinze minutos. Ou sete horas... Que horas são, agora? Não dei conta. Fiquei ali, maravilhada, em silêncio. Olhando a paisagem. Perdida em longos pensamentos. Ora pensando em nada. Ora viajando por lugares distantes. Indo e vindo na paisagem quieta e relaxante. Instante de paz e serenidade. Coisa que vem com a idade.

Ele, ao meu lado também em silêncio, olhava a imensidão. Talvez, observando as diferentes formas na silhueta de cada montanha. As nuvens. A bruma. A grama. O horizonte reticente... O silêncio cabia ali tão perfeitamente que lembrei de um poeta anônimo que dizia com alma e profundidade... O silêncio não pesa onde existe intimidade. 

Não ter que falar. Nem comentar. Nem explicar. Apenas estar. Os dois quietos. Calados. Lado a lado. E o silêncio a nos completar. Leves momentos em que a vida pede pausa. Depois do stress. Da dor. Da raiva, da náusea.

Depois da festa desgastante. Em que temos que falar. Sorrir. Comer. Cumprir. Postar. E obrigatoriamente ser feliz... Como é bom silenciar. Aquietar por um momento. Refazendo a alma por dentro. Sozinha, só no pensamento. Sem dever a cumprir. Sem meta a alcançar. Apenas observar. Ser. Estar. Respirar.

Ficamos ali, cada um no seu silêncio. Juntos, eu e ele. Sem nada a dizer. Foram duas ou três horas... Teriam sido semanas? Só alguns minutos de êxtase e brevidade, no melhor silêncio.    
O silêncio divino... da cumplicidade!     



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terça-feira, 3 de junho de 2025

O REMENDO XADREZ


Eu não gostava dos rojões. Dos estalos. Da explosão! Gostava do cheiro da festa junina. Cheiro de pólvora. Fumaça. O ardido nas narinas... Até hoje, isso me lembra um tempo feliz. Festa simples. Gente simples. Do interior caipirês do nosso país.  

Todo ano era igual. Já em maio, as professorinhas dedicadas começavam a combinar. Não havia muito o que mudar. Compravam as sedas. Faziam as bandeirinhas. Colavam no barbante. Vermelhas. Amarelas. Azuizinhas. Os meninos subiam nas escadas para enfeitar. O pátio do colégio ficava alegre. Com bandeiras, balões e fogueira. Sem fogo. Só toras de madeira. Tudo no centro da quadra, dando ar de São João. Era lá a quadrilha. Iam todas as famílias... 

Os ensaios começavam um mês e meio antes. Cansativos, mas divertidos. Dava pra matar umas boas aulinhas, com o consentimento raro das professorinhas, que também dançavam festivas. Sofrido mesmo era ouvir durante horas e horas a mesma trilha sonora. Talvez a única música junina do mundo inteiro, tiro certeiro: Pararararararará... E lá ia a gente montar a quadrilha. Olha a chuva. Olha o túnel. Olha a cobra... 

E se de um lado a festa dava trabalho, de outro era mágico e engraçado. Ter um dente pintado, estragado, bem na frente da boca era o sorriso mais desejado. Calças de jacu nos garotos. Nas meninas, vestidos de chita com fitas. E como era "bão"! Remendos na roupa, então...  

Lembro quando eu tinha uns dez anos... Fui escolhida, pela terceira vez, para ser a noivinha na quadrilha. Talvez pelo fato de ser pequenininha. Cabelos grandes. Sei lá. O fato é que eu e o meu parceiro Paulo José Barreiro (não sei porque as crianças lembram o nome inteiro dos amigos mais antigos...) fomos escolhidos, mais uma vez, para sermos o casal.  

Brava,  já em casa, expliquei para minha mãe quase chorando : - Mais uma vez, vou ser a noivinha! – Mas a noiva é a principal. Você não gosta? é uma honradez?  - Mãe, será que você não entende. Eu gosto de remendo. Remendo xadrez! Noiva não usa remendo xadrez... 

E aquele cheiro de pólvora, voltou subitamente, às minhas narinas mais uma vez...



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domingo, 1 de junho de 2025

OS CASACOS DO ARMÁRIO

Bastam os primeiros ventos gelados se esgueirando pelas esquinas, minha alma arrepia e eu corro para abrir a parte alta do armário. Um compartimento meio escondido onde moram os casacos antigos.
Reconheço alguns de invernos passados... A jaqueta rosa que nunca usei. Aperta um pouco. Mas é tão linda! O Blazer xadrez que ganhei da Tia Lucinda. Só uso em reuniões formais. É sério demais. E outro laranja, que custou caríssimo. Uso pouquíssimo. Nem sei se valeu.
São tantos os casacos. O preto não é tão bonito, mas vai bem com qualquer coisa. Uso, quase infinito. Está até puído. Moído. Talvez o coloque hoje. Está decidido! Tão bom não ter muito que pensar...
As malhas também estão guardadas no armário. Olho todo ano para elas. Quando irei usar a amarela?  E o cardigan que comprei há três anos atrás? Usei numa tarde cinzenta, repleta de problemas. Depois nunca mais. Lembrança triste ele me traz...  
Todo inverno os mesmos pensamentos sobre os mesmos casacos. Alguns, passo batido. Nem lembro quanto tempo tem. Alguns, nunca usarei. No final das contas, vou vestir dois ou três.
E assim, eles ficam lá. Os clássicos, os ultrapassados, os mais descolados... Mostrando o tanto que não reinventei. Tantas combinações possíveis e diferentes. Que não tentei. Estão lá os casacos, parados e abraçados. Esperando uma ocasião que não vem. O por quê, eu nem sei. Guardei. Deixei. E todo ano é igual. Tiro alguns deles no outono pra tomar um ar fresco no varal e depois volto tudo para o lugar.

Mas, este ano prometo mudar. Escancarar o armário. Jogar fora as traças. Doar pares incontáveis de sapatos. E deixar apenas o que for vestir.

Os casacos... e os sonhos. Que ainda couberem em mim.      
           
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    terça-feira, 20 de maio de 2025

    SOFIA... QUEM DIRIA!


    Os seios enormes balançavam e saltavam dentro do decote à medida que ela caminhava. Trôpega, saindo pelo portão de ferro em direção à rua. O salto quinze, de pelica, em uma das mãos. E um longo vestido que arrastava papeizinhos amassados, tampinhas e bitucas de cigarro. A barra dupla, já meio suja, rente ao chão...


    Partiu ziguezagueando pela calçada no meio da madrugada num bate papo interno e solitário. Alcoólico. Hiperbólico. Melancólico. Na boca, risos, lágrimas e borras de batom. 
    -É a Dona Sofia! Ela tem saído assim nas últimas semanas, depois da separação, completou o porteiro do clube noturno, com ar de compaixão. Fui acompanhando o seu trajeto mambembe pelas ruas desertas, imaginando os estragos do desamor. 

    Talvez, um casamento de indiferença. Conveniência. Ou uma relação de muitos anos, com apegos financeiros. Briga por dinheiro! Ou, a descoberta de uma amante mais jovem. Uma mulher. Quem sabe, um homem? Ou nada disso. Apenas um porre! 
    Para afastar a solidão de nunca ter encontrado um amor desses desenfreados. De tirar a roupa e os sapatos. Pode ter tido tentativas frustradas ou apostas em pessoas erradas.
     
    A mulher cambaleante seguiu até virar a esquina e sumir na trilha escura da rua, e  dos meus pensamentos. Coisa de momentos. Tão humanos certos tropeços...

    Na semana seguinte, saindo do médico, encontrei a Dona Sofia. 
    Andar reto. Terno tubinho, todo fechado. Scarpin baixo. Figurino fino. Cumprimentou brevemente a secretária, deixando o consultório olhando de resvalo, com seus óculos meio grau e um ar profissional.

    Perguntei quem era, só para me certificar... -Dona Sofia! Ela é terapeuta de casais! Conserta a vida amorosa de todo mundo. 

    Dona Sofia, balbuceiei baixinho... quem diria?



    *                                *                                  *                                      *

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    terça-feira, 13 de maio de 2025

    A FLOR GUARDADA

    Entre as páginas amareladas e o cheiro de papel envelhecido encontrei a flor presa e amassada. 

    Era um arremedo de flor, aparência seca e desmontada, mas ainda flor, embora o tempo lhe tivesse roubado a cor.

    Passei a mão com cuidado, como se acariciasse um pássaro frágil. Tentei lembrar por que a guardei. De quem era? Em que momento da minha vida ela se tornou importante o suficiente para ser preservada? Um silêncio alto me incomodava.

    Aquela flor sem história não me dizia nada e carregava uma rama de possibilidades. Lembrança de um encontro no passado? Onde as palavras foram sufocadas e nas páginas, lacradas? Uma paixão breve que deixou seu rastro leve? 

    Quem sabe, um presente da natureza! A flor caída no caminho se dissolveria num jardim vizinho e eu não a deixaria para trás. O livro, então, tornou-se um cofre. Um abrigo onde o tempo não iria tocar. 

    Ou simplesmente por nada. Eu, criança, tentando esconder a flor roubada. Maldade infantil para ver, um dia, suas pétalas amassadas. 

    Seca, prensada entre as palavras, a flor guardou sua história dentro de outras histórias. O dia em que foi colhida, a luz do sol que brilhava no dia que sumiu no livro e hibernou.

    Eu continuo olhando a flor dormente. Nós, humanos, somos assim. Guardamos coisas sem motivo aparente e esquecemos as mais importantes. 

    Fechei o livro. Deixei a flor onde estava. Quieta e deitada, sem interferir.

    Não quis movê-la do lugar, como se respeitasse sua missão...  de me fazer sentir.


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