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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

PÉ SUJO



Era tão bom! Durante o dia, corria e brincava. Subia e descia. As ladeiras e as escadas, na frente da casa. Depois, comia correndo e de novo pra rua voltava. Rodava, pedalava, empinava...
Ás vezes, brigava. Chutava e chorava. Descabelava e sorria. E finalmente, cansava. No começo da noite, quase desmaiando, em qualquer lugar a gente desabava. A mãe, com pena, nem banho dava. E a gente, com os pés sujos, dormia um sono só. Sono profundo. Com pés imundos.

Quem não dormiu com pé sujo uma vez na vida, não sabe o que é bom. Pé de infância cascuda. Pré-digital. De jogos com bola, amarelinha, mãe da rua. Rolimã, bola de gude ou bafo na calçada. E a bicicleta entre os carros, num ziguezague perigoso e acelerado. Um risco danado.

Na chuva então, chapinhando de poça em poça. Nem parecia uma moça! E o pé cada vez mais sujo... - Menina, moleca! Vem se lavar! E a gente por fim obedecia. Mas era um pé de gostosura. Aventura. Inocência. Poeira pura.

Hoje as crianças tem pés com rodinhas. Tênis com luzinhas. E a sola do pé bem lisinha. De quem não pisa no chão, no quintal, na areia... e nem na grama do vizinho! 
Eta infância sem graça, de pé de anjinho...                                                                                                                     
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 Crônica inspirada na música de Dorival Caymi... Quando durmo...
                                                                                 youtu.be/zs1J7CLG9ss   




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terça-feira, 30 de setembro de 2025

A LÁGRIMA NA JANELA...


Era gelada a madrugada. O calor da nossa respiração embaçava o vidro da janela do quarto. Não se via nada do outro lado. Só o fundo escuro, o vapor e um leve enredo de amor. Lá fora, tudo silenciava.

Meus olhos estalavam vivos e sem sono, em feliz abandono. De repente, um clarão em minha testa! A lua, de penetra, entrou pela fresta da outra janela. Alva. Branca. Iluminando feito um sol no quintal. Nunca vi igual. Ali, ela achou seu lugar e decidiu ficar.

Acordada à horas na demorada madrugada fiquei olhando a lua prateada que não queria ir embora. Já tinha passado da hora. Mas como dormir agora?                

De certo, a lua queria encontrar o sol que do outro lado já se aprontava. O céu clareava. A noite ia virando dia... E enfim, o astro rei apareceu. Ficaram os dois no céu ao mesmo tempo. Um em cada canto! Eu os olhava com olhar de espanto. Talvez fossem amigos distantes. Quem sabe, tenham sido amantes. A lua só queria dar uma espiadinha. Um oi de luz já bastaria.

Não teve jeito. O sol subiu com tudo que tinha direito, abriu o novo dia e a lua apaixonada e pálida foi desaparecendo. Fiquei acordada até que sumisse de vez, deixando a sombra enevoada de quem esteve ali, por muito tempo parada. 

Talvez ela tente amanhã encontrar o sol novamente na fria madrugada. Lunática! Não irá conseguir jamais, salvo uma hecatombe final. Melhor não pensar nisso, nesses dias de novo normal. A cena linda e triste apertou meu coração. 

Olhei o vidro embaçado da outra janela, me deparando com a lágrima condensada e gélida que rolou. 

A janela, emotiva, também chorou.


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quinta-feira, 18 de setembro de 2025

PASSARINHOU, FLORESCEU, FLORIU...



Abelhinhas fartas e meladas entraram valsando pela janela aberta como se tivessem  cumprido bem seu papel. E pelas asas de alegria, devem ter produzido um ou dois baldes de mel.

Chegaram as borboletas azuis, amarelas e pretas. Sabiam de alguma novidade. Largaram, amarrotadas, seus escuros casulos e pela primeira vez, experimentaram voos mambembes e inseguros à luz da liberdade.  
      

Os curiós, curiosos, foram os primeiros a saber. Não deram um pio. Um deles fingiu que não me viu. Comecei a desconfiar de alguma notícia mais quente. Os bem-te-vis bem-te-viram antes de todos que as paisagens estavam diferentes e entoaram notas de terças numa eloquente harmonia sertaneja.

 

A grama estava mais verde. Os sapos pulavam. Os insetos voavam. Nos cantos, bichinhos doidos se embolavam e sem pudor se amavam. Que raios acontecia ao redor? Quem espalhava esse tanto de amor... e sacudia poléns afrodisíacos nas florações?

 

O bem me quer não bem me quis estragar a surpresa. Melhor perguntar à mãe natureza. Fui até o pé de milho. Sussurrei ao pé do seu verde-amarelo ouvido: quem é que arrancou o terno cinza e vestiu todo mundo com traje florido? 


O milho pipocou e não falou. O dente de leão rugiu, mas não contou. Nem o vento quente que bateu, me soprou. Alguém pode dizer o que foi que rolou? E tudo desabrochou. Explodiu de amor?


E debaixo da janela, a Maria sem vergonha, tagarela não se segurou... ainda não sabe?


A primavera, que chegou!



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segunda-feira, 15 de setembro de 2025

PONTO NA IMENSIDÃO...


A imensidão me encanta. E me assusta. 
O céu infinito e o oceano profundo dão a justa dimensão do meu tamanho no mundo. Um simples ponto. Micro. Minúsculo. E nesse azul encontro, meu ego fica meio tonto e vai-se embora. Resta apenas o aqui, agora. Perco poderes. Cargo. Dinheiro. Glória. E o pouco da própria história.       
                                                   
Somos partícula de um todo. Poderoso, gigante e majestoso. Eu sinto a imensidão por dentro. E me comovo...  
                                     
Deve ser assim olhar de perto as estrelas. No cenário mágico e incompreensível do infinito. Entre a luz dos astros, o espaço e um buraco enigmático. Buraco negro que guarda segredos. Fotografado. Jamais desvendado. Que me atrai. E mete medo!              
Dizem que os astronautas, quando voltam, ficam loucos. Ou passam a louvar a Deus. Até mesmo os ateus. Não dá pra ficar são diante da imensidão.   
               
Foi no grande cânion da Foz do Iguaçu, meu contato mais próximo com a imensidade. As águas em queda livre. 

Volumáximo. Volumenso. Volumístico! Inventei palavras para descrever a sensação daquelas cascatas colossais. Naturais. Jorrando com força máxima. Energizando as rochas e o chão. No dia ensolarado de luz e reflexão.  

A vontade era entrar sob as fortes cascatas deixando cair sobre minhas costas o jorro das toneladas. Águas geladas e correntes. Lavando e levando tudo. Do corpo e da mente. Dores. Dissabores. Pensamentos antigos. Hábitos nocivos. Coisinhas banais que não me servem mais.                

Sobraria então, o corpo são. E uma alma novinha, mais pura, pra recomeçar. 
A imensidão me encanta. E me assusta. Imensidão das águas. Do céu. Do mar... 

Que me põe, sempre, no meu justo lugar.    


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terça-feira, 9 de setembro de 2025

A CASINHA NA ÁRVORE...


Robinson Crusoé. Mogli. Tarzan... Alguns heróis das aventuras na selva ainda moram no meu imaginário. E eles saíram sem pedir licença. Das fábulas e do meu pensamento. Enquanto eu subia lentamente, degrau por degrau, a escada da pequena casinha, construída em cima de uma antiga árvore da fazenda. Era como se eu visse a minha história de vida invertida. Eu ia subindo e me tornando cada vez mais jovem... 

No primeiro degrau, desapareceram as dores nos joelhos. No segundo, a doença incurável da mãe que se foi... No terceiro, o trabalho chato e rotineiro sumia feito nevoeiro. No quarto, o marido cansado virava o antigo namorado. Do quinto em diante eu já era estudante. Adolescente. Um pingo de gente. E pronto! Criança outra vez. Com uns cinco anos. Ou seis... 

Entrei na casinha com a alma em sobressalto. Enormes troncos rasgavam o chão e furavam o teto não muito alto. Uma beliche. Um lampião por perto para quando escurecer. E um alpendre pra ver o sol nascer... e morrer. Fiquei lá por algumas horas, comendo goiabas verdes, araçás e amoras. Como se o tempo parasse. Só às vezes, o grito do Tarzan ecoava na mente, passando num cipó, muito rapidamente... 

E ao descer a escada, degrau por degrau, eu já não era igual. Uns bons anos mais jovem, talvez. Tanto bem que me fez! 
Por isso, de vez em quando, se me aborreço ou o mundo fica sério demais, subo na casinha da árvore para rever os velhos sonhos e sorrir uma vez mais. Mesmo que não exista mais a casinha. Nem a árvore no jardim... 

Eu agora me recolho. Em algum lugar criança, dentro de mim... 




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quarta-feira, 3 de setembro de 2025

O CASACO CARMIM...


As pessoas mais queridas e amadas do meu convívio passado usavam casacos.

Não desfrutei muito tempo com minha avó materna, uns seis anos apenas, mas lembro do seu casaquinho marrom. Tricô. Feito a mão. Ficava por cima de um vestido largo. Ou de uma camisola de flanela estampada, já no fim de sua caminhada, mais frágil e adoentada. Era quentinho quando ela me abraçava. Cheiro de vó. Aconchego de amores e sabores. Sopa de couve, e sabonete Alma de Flores. 

Minha tia também tinha um casaquinho. Era azul, com dois bolsinhos pequenos. Cardigan. Sempre tinha umas moedinhas. Às vezes, balas de hortelã. Ela pedia pra eu pegar lá dentro. Casaquinho perfeito! 

Até minha mãe teve um casaco marcante. Vermelho, com botões gigantes. Dava a ela juventude e elegância. Usou uns dez anos, sem constrangimento ou pudor. Na maioria das festas e comemorações. Não esqueço aqueles botões.

Os casacos deixam marcas. Os pequenos e os grandes. Lembro dos filmes clássicos dos anos cinquenta. Homens e mulheres com casacos de lã. Em Paris. Nova Iorque. Amsterdã... 
Ou numa ponte em Veneza. A cena era sempre a mesma. Despedida, com muita elegância e tristeza. 

Deixo pra lá os casacos da Europa... O que me importa são os casaquinhos das mulheres queridas que conheci e conheço por aqui. Marcas que não tem preço. 

A Dona Domingas, por exemplo... Faz limpeza aqui no prédio. Vejo de longe seu casaquinho carmim. Tem sempre um sorriso e um bom dia pra mim. 

Doem suas pernas. Anda já curvada. Batemos papo na escada. Ela conta da família. Tem três filhos, um só trabalha. O marido não pode. Só atrapalha. Tem netos que não acabam mais. 

E ela, aos sessenta e cinco, com asma, bronquite e rinite, ainda tem que trabalhar.  
Ah, Dona Domingas, merecia muito mais. 
Tá na hora... do seu casaco carmim se aposentar...



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AGRADECIMENTO! 
Exposição “ Mulheres, o poder além das imagens”, na Pinacoteca de Santos!
Linda iniciativa da jovem e talentosa fotógrafa Isabela Garcia, retratando o universo feminino, representado por 21 mulheres atuantes na Baixada Santista. 
Muita honra e alegria de ter sido uma delas!



                                                    Inês e Isabela/ Pinacoteca de Santos

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

HOJE EU SAIO NA CHUVA...

Eu saía na chuva. Brincava no meu quintal, colhendo com as mãos os pingos grossos que caiam feito patacas esfriando o chão. Era a alegria que vinha do céu nas tardes de verão. As gotas desciam pela minha cabeça até os meus pés descalços. No piso liso, um pouco de sabão. Eu deslizava em engraçadas lambanças e escorregões.

Eu saía na chuva. Lembro dos pés encharcados dentro do sapato de couro alemão. A meia empapuçada. Eu batia os pés nas poças do chão. Chegava do colégio em total desalinho. Secava na toalha, guardando no coração o cenário alagado e festivo do caminho. 

Eu saia na chuva, sim. Em especial no jardim. Quando a chuva cessava eu abaixava os galhos das árvores para me molhar um pouco mais. Eu era flexível como os galhos finos. Feliz como o mato molhado, nutrido e saciado. Era a menina ainda verde, buscando água para amadurecer.

Eu saia na chuva até pouco tempo atrás, no meu entardecer.

Hoje, sob um guarda-chuva barato, ando pelas ruas com sapatos apertados. Vejo a secura das pessoas que seguem com passos acelerados. Seguem rápido para voltar rápido. Os anos pesam. Meu caminhar é cansado.    

Mas o verão continua, com suas chuvas vigorosas. O céu chora e a natureza se descontrola. A água vem forte do céu, caudalosa. 

Hoje vou sair na chuva! Vou dançar de novo, chapinhando nas ruas. Vou rodopiar e subir no poste feito a cena da Broadway.    

O que salva minha alma da secura... é essa gota interna, livre,  louca... e sem censura.


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quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O ÚLTIMO TOQUE...

Tarde de sol quente. A Rua da Liberdade fervilhava feito um vespeiro. O recém- aposentado não esquentava como o tempo. Não estava preso à mais nada. Nem emprego, nem mulher ou namorada. Mas alguma coisa ele ainda procurava.

Entrava e saia das lojinhas, subindo e descendo as ruas- artérias que alimentavam o coração da cidade. O centro comercial de tantas glórias, tinha uma espécie de circulação extracorpórea. Indo e vindo de ambulantes, pedestres, pedintes e suas histórias... 

Primeiro pensou em comprar roupas e calçados. Desistiu no ato. Não precisava mais de sapatos. Nem de ternos, gravatas e nós enforcando o pescoço. Poderia viver de moletom e um tênis velho que durasse até o osso.

Não queria livros. Nem relíquias em vinil. Tinha tecnologia suficiente para baixar o que bem entendesse nas redes. Também não queria nada esportivo. Seu time em baixa. Barriga em baixa. Pressão, colesterol e triglicérides em alta. O melhor era correr. Para um médico assim que possível. Talvez, no ano que vem!

Queria se dar um presente. Entrou rapidamente numa lojinha de importados e comprou um despertador. O melhor e mais barulhento que havia. Pagou cem pratas e foi pra casa.

Na véspera do novo ano. Colocou-o para despertar as cinco em ponto. Compromissos não tinha. Nem peru para colocar no forno. Era o Reveillon do abandono.

Queria o prazer imensurável de acordar no velho horário de trabalho e interromper o alarme diário, malvado e intermitente que havia destruído seu labirinto e  alugado sua mente.

O alarme tocou. Esticou as mãos e deu o último toque. O certeiro e definitivo, naquele  pontual e irritadiço torturador suíço.

Depois, tateou sonolento, e mergulhou-o num copo d' água, virando-o de castigo contra a parede.

Aposentado — e finalmente vingado — saiu da cama e foi dormir numa rede.                                                                                   

 

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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O LADO OCULTO DE PARATY

           
As pedras de Paraty escondem segredos que ninguém, nem os últimos calceteiros,  sabem decifrar. Paraty tem história escondida. Árvores que saltam das paredes. Igrejas e casarios. Fantasmas da abolição.

As ruas de Paraty não gostam de salto alto. De pedras lisas e irregulares, elas pedem sandálias... Chinelos rasos e humildes, para os pés dos visitantes. Ou até mesmo, pés descalços, como os dos escravos que lá pisaram. Pés sujos de areia, pele grossa, pés de trabalhador servil.

Mas é lá no vão das fendas entre as pedras, que escorrem os maiores segredos... o sangue dos negros que há muito sofreram, a magia da culinária simples de peixes e pão. E a verdade dos livros que nunca estiveram nas feiras de literatura.

As pedras de Paraty tentam esconder as memórias do Brasil colônia e quase conseguem. Mas só até de tardezinha, quando a água do mar, sagrada e salgada, vem e invade as ruas. Lava e leva as lembranças para além do alto mar!

A noite, então, as casinhas pintadas de azul, amarelo e branco fervilham ao som de conversas distintas, de obras de arte, cachaça amarela e futebol. E muita bossa nova o ano inteiro. Afinal, é o Rio de Janeiro!

E na manhã brilhante de mais um dia de sol e um mar verde sem retoques, as escunas se preparam para o passeio, repletas de turistas de diferentes línguas...

Mas é o sotaque carioca que nos avisa alegremente, bradando da proa: - Hora de partir, rumo ao paraíso! E nas tímidas caixinhas de som da embarcação começa a tocar, também em mim, a canção...

“Isso aqui ô ô... é um pouquinho do Brasil iá iá...”    

E como é!

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quarta-feira, 23 de julho de 2025

DUPLO RESGATE



Ele tremia, assustado. Num vaivém encabulado, tentava cruzar a louca e fria avenida.

Magro, medroso e molhado. Perdido entre os carros — prováveis algozes — que passavam velozes. Presenciei a cena de medo real e toda a aflição do pequeno animal.

O peludinho ia e voltava. Depois, de novo tentava. O carro da direita parava. O cãozinho seguia, e o da esquerda acelerava.
— Meu Deus, quase morreu!
Um carro freou. Que bom! Mas o cão refugou.
E foi assim: uma agonia sem fim. Eu não sabia como ajudar, nem como resgatar.
Ele corria pra frente e pra trás num ziguezague de arrepiar.

Chegou, então, um rapaz. Uma moça que ia pra faculdade.
Um entregador de pizza. E um senhor de idade.
Resolvemos que o trânsito todo teria de parar.

Força-tarefa. Ato de bravura — ou loucura.
Foi sem muito pensar: detivemos os carros um a um.
O cãozinho, assustado e com o rabinho entre as pernas, foi lentamente atravessando.
De orelhinha baixa, cruzando a faixa.
Saiu meio de lado, como quem sabe da aflição que nos havia causado.

Olhamos com doçura e cara feia — como olham as mães diante de alguma besteira.
Ou quando soltamos de suas mãos nas ruas e saímos sem pensar.
Elas sabem o perigo do vaivém.
E hoje, nós também!

Somos o vira-lata na avenida.
Sem saber desviar dos problemas da vida.
Doenças. Tragédias. Mágoas reprimidas.
Tentamos, sozinhos, dar conta.
Mas a coisa acelera.
A dor continua.
A gente se desespera.

E pedimos força-tarefa.
Amigos. Parentes. Vizinhos que cheguem depressa.
Venham nos salvar.

Seguimos em frente — e vivos!
Com ajuda e alívio.
Feito o pobre cão molhado, envergonhado e encolhido.

Ninguém sobrevive sozinho.



*                                   *                                 *                               
                    

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quinta-feira, 3 de julho de 2025

NO FUNDO DA GAVETA...


Eu procurava minha bandana. Lembrava de ter guardado naquela gaveta. Não era original, mas dava um ar de Janis Joplin, em Woodstock. Eu queria isso, uma pitada de rebeldia, na minha fantasia.

Mas o achado mais devastador foi o interior daquela gaveta esquecida. Aquela do meio do armário. Que eu sempre abria só até a metade. E à bem da verdade, eu via somente a parte da frente. Onde estavam as meias de seda que eu usava nos invernos gelados. Todas, com um fiozinho puxado. 

Fui abrindo a gaveta com cuidado. Mãos um pouco frias. Parecia um movimento interno. Quase gástrico. Uma espécie de bulimia. Trazendo de volta coisas não digeridas. Peças guardadas com datas vencidas. Muito bem escondidas. 

Depois das meias, saltaram três sabonetes. Devem ter sido sachês perfumados. Ganhei do namorado. Seriam verdes ou azulados? Agora eram translúcidos, inodoros e amassados. 

Mais no fundo, encontrei uma luva. Minúscula. Mal cabia em meu dedo mindinho. Devia ter uns cinco aninhos quando ganhei da minha tia. Lá estava ela. Com seus dedinhos de sono e incontáveis anos de abandono. 

No final, as lingeries. Duas cintas-ligas! Nunca usadas. Uma violeta. Outra cinza! Os botões não fechavam. Tirei da gaveta e estavam grudadas em um corpete. Bonito. De renda preta. Ainda na moda. Se eu usasse. Se eu soubesse que tinha. Se eu lembrasse da gaveta... 

Eu nem sabia mais o que procurava. Achei uma faixa azul bacana. Poderia servir, ao invés da bandana. Mas foi no fundo da gaveta, que encontrei a ironia. Uma peteca de penas coloridas. E, na base almofadada, um bichinho sorrindo com a frase: bem-vinda! 
 
Era, atrás das fantasias — a minha criança, lá no fundo, escondida. 



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quarta-feira, 18 de junho de 2025

A PAZ DO BANQUINHO...

                                                              

Preciso de um tantinho de paz. Uma paz quietinha. Miudinha. Num lago adormecido. Com um banquinho branquinho para me sentar.

De criança eu buscava as pedras roliças e chatas. Alçava o braço para trás e lançava. O golpe ia rente à água e a pedra seguia ligeira, pulando na superfície. Uma, duas, três vezes, quicando. Pai, mãe, filho e filhas! O lago aos poucos ia se agitando.

Menina maluquinha, eu voltava e lançava mais pedrinhas para formar a grande família. Nunca conseguia. A cortina de água inerte e calma do lago respondia com ondas pequenas. Círculos que saiam do ponto de contato e se estendiam num grupo de ondas suaves até a borda final. Logo o lago voltava ao seu estado pacífico, natural.

Sinto falta da criança pedra-saltitante que eu era. Um certo cansaço me alcança. 

Algumas pedradas da caminhada criaram ondas gigantes na minha alma. A violência nos ronda. O mundo, às vésperas de alguma ofensa tonta.

O tempo e a esperança deslizam pelas frestas. A Terra reclama. Caem gelos e perigosas pedras.

Achei o banquinho. Branquinho, no lago calmo no meio do mato. Sentei sem nada nas mãos. Olhei as árvores, o céu, o lago calmo e feliz. Ficarão nos olhos as fotos que não fiz.

O manto da noite desceu com um ar de conclusão. Tudo seguiu em paz, só as cigarras entoavam uma canção.

Quebrando naturalmente o si si si si... silêncio.



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A brincadeira de quicar pedras na água é levada a sério por muita gente. O stone skipping tem até uma associação norte-americana e recorde mundial reconhecido pelo Guinness Book... 88 pulos!

https://gizmodo.uol.com.br/pedra-quica-88-vezes-na-agua/

 



segunda-feira, 9 de junho de 2025

SILÊNCIO A DOIS...


Não sei se passaram dez ou quinze minutos. Ou sete horas... Que horas são, agora? Não dei conta. Fiquei ali, maravilhada, em silêncio. Olhando a paisagem. Perdida em longos pensamentos. Ora pensando em nada. Ora viajando por lugares distantes. Indo e vindo na paisagem quieta e relaxante. Instante de paz e serenidade. Coisa que vem com a idade.

Ele, ao meu lado também em silêncio, olhava a imensidão. Talvez, observando as diferentes formas na silhueta de cada montanha. As nuvens. A bruma. A grama. O horizonte reticente... O silêncio cabia ali tão perfeitamente que lembrei de um poeta anônimo que dizia com alma e profundidade... O silêncio não pesa onde existe intimidade. 

Não ter que falar. Nem comentar. Nem explicar. Apenas estar. Os dois quietos. Calados. Lado a lado. E o silêncio a nos completar. Leves momentos em que a vida pede pausa. Depois do stress. Da dor. Da raiva, da náusea.

Depois da festa desgastante. Em que temos que falar. Sorrir. Comer. Cumprir. Postar. E obrigatoriamente ser feliz... Como é bom silenciar. Aquietar por um momento. Refazendo a alma por dentro. Sozinha, só no pensamento. Sem dever a cumprir. Sem meta a alcançar. Apenas observar. Ser. Estar. Respirar.

Ficamos ali, cada um no seu silêncio. Juntos, eu e ele. Sem nada a dizer. Foram duas ou três horas... Teriam sido semanas? Só alguns minutos de êxtase e brevidade, no melhor silêncio.    
O silêncio divino... da cumplicidade!     



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terça-feira, 3 de junho de 2025

O REMENDO XADREZ


Eu não gostava dos rojões. Dos estalos. Da explosão! Gostava do cheiro da festa junina. Cheiro de pólvora. Fumaça. O ardido nas narinas... Até hoje, isso me lembra um tempo feliz. Festa simples. Gente simples. Do interior caipirês do nosso país.  

Todo ano era igual. Já em maio, as professorinhas dedicadas começavam a combinar. Não havia muito o que mudar. Compravam as sedas. Faziam as bandeirinhas. Colavam no barbante. Vermelhas. Amarelas. Azuizinhas. Os meninos subiam nas escadas para enfeitar. O pátio do colégio ficava alegre. Com bandeiras, balões e fogueira. Sem fogo. Só toras de madeira. Tudo no centro da quadra, dando ar de São João. Era lá a quadrilha. Iam todas as famílias... 

Os ensaios começavam um mês e meio antes. Cansativos, mas divertidos. Dava pra matar umas boas aulinhas, com o consentimento raro das professorinhas, que também dançavam festivas. Sofrido mesmo era ouvir durante horas e horas a mesma trilha sonora. Talvez a única música junina do mundo inteiro, tiro certeiro: Pararararararará... E lá ia a gente montar a quadrilha. Olha a chuva. Olha o túnel. Olha a cobra... 

E se de um lado a festa dava trabalho, de outro era mágico e engraçado. Ter um dente pintado, estragado, bem na frente da boca era o sorriso mais desejado. Calças de jacu nos garotos. Nas meninas, vestidos de chita com fitas. E como era "bão"! Remendos na roupa, então...  

Lembro quando eu tinha uns dez anos... Fui escolhida, pela terceira vez, para ser a noivinha na quadrilha. Talvez pelo fato de ser pequenininha. Cabelos grandes. Sei lá. O fato é que eu e o meu parceiro Paulo José Barreiro (não sei porque as crianças lembram o nome inteiro dos amigos mais antigos...) fomos escolhidos, mais uma vez, para sermos o casal.  

Brava,  já em casa, expliquei para minha mãe quase chorando : - Mais uma vez, vou ser a noivinha! – Mas a noiva é a principal. Você não gosta? é uma honradez?  - Mãe, será que você não entende. Eu gosto de remendo. Remendo xadrez! Noiva não usa remendo xadrez... 

E aquele cheiro de pólvora, voltou subitamente, às minhas narinas mais uma vez...



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domingo, 1 de junho de 2025

OS CASACOS DO ARMÁRIO

Bastam os primeiros ventos gelados se esgueirando pelas esquinas, minha alma arrepia e eu corro para abrir a parte alta do armário. Um compartimento meio escondido onde moram os casacos antigos.
Reconheço alguns de invernos passados... A jaqueta rosa que nunca usei. Aperta um pouco. Mas é tão linda! O Blazer xadrez que ganhei da Tia Lucinda. Só uso em reuniões formais. É sério demais. E outro laranja, que custou caríssimo. Uso pouquíssimo. Nem sei se valeu.
São tantos os casacos. O preto não é tão bonito, mas vai bem com qualquer coisa. Uso, quase infinito. Está até puído. Moído. Talvez o coloque hoje. Está decidido! Tão bom não ter muito que pensar...
As malhas também estão guardadas no armário. Olho todo ano para elas. Quando irei usar a amarela?  E o cardigan que comprei há três anos atrás? Usei numa tarde cinzenta, repleta de problemas. Depois nunca mais. Lembrança triste ele me traz...  
Todo inverno os mesmos pensamentos sobre os mesmos casacos. Alguns, passo batido. Nem lembro quanto tempo tem. Alguns, nunca usarei. No final das contas, vou vestir dois ou três.
E assim, eles ficam lá. Os clássicos, os ultrapassados, os mais descolados... Mostrando o tanto que não reinventei. Tantas combinações possíveis e diferentes. Que não tentei. Estão lá os casacos, parados e abraçados. Esperando uma ocasião que não vem. O por quê, eu nem sei. Guardei. Deixei. E todo ano é igual. Tiro alguns deles no outono pra tomar um ar fresco no varal e depois volto tudo para o lugar.

Mas, este ano prometo mudar. Escancarar o armário. Jogar fora as traças. Doar pares incontáveis de sapatos. E deixar apenas o que for vestir.

Os casacos... e os sonhos. Que ainda couberem em mim.      
           
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    terça-feira, 20 de maio de 2025

    SOFIA... QUEM DIRIA!


    Os seios enormes balançavam e saltavam dentro do decote à medida que ela caminhava. Trôpega, saindo pelo portão de ferro em direção à rua. O salto quinze, de pelica, em uma das mãos. E um longo vestido que arrastava papeizinhos amassados, tampinhas e bitucas de cigarro. A barra dupla, já meio suja, rente ao chão...


    Partiu ziguezagueando pela calçada no meio da madrugada num bate papo interno e solitário. Alcoólico. Hiperbólico. Melancólico. Na boca, risos, lágrimas e borras de batom. 
    -É a Dona Sofia! Ela tem saído assim nas últimas semanas, depois da separação, completou o porteiro do clube noturno, com ar de compaixão. Fui acompanhando o seu trajeto mambembe pelas ruas desertas, imaginando os estragos do desamor. 

    Talvez, um casamento de indiferença. Conveniência. Ou uma relação de muitos anos, com apegos financeiros. Briga por dinheiro! Ou, a descoberta de uma amante mais jovem. Uma mulher. Quem sabe, um homem? Ou nada disso. Apenas um porre! 
    Para afastar a solidão de nunca ter encontrado um amor desses desenfreados. De tirar a roupa e os sapatos. Pode ter tido tentativas frustradas ou apostas em pessoas erradas.
     
    A mulher cambaleante seguiu até virar a esquina e sumir na trilha escura da rua, e  dos meus pensamentos. Coisa de momentos. Tão humanos certos tropeços...

    Na semana seguinte, saindo do médico, encontrei a Dona Sofia. 
    Andar reto. Terno tubinho, todo fechado. Scarpin baixo. Figurino fino. Cumprimentou brevemente a secretária, deixando o consultório olhando de resvalo, com seus óculos meio grau e um ar profissional.

    Perguntei quem era, só para me certificar... -Dona Sofia! Ela é terapeuta de casais! Conserta a vida amorosa de todo mundo. 

    Dona Sofia, balbuceiei baixinho... quem diria?



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    terça-feira, 13 de maio de 2025

    A FLOR GUARDADA

    Entre as páginas amareladas e o cheiro de papel envelhecido encontrei a flor presa e amassada. 

    Era um arremedo de flor, aparência seca e desmontada, mas ainda flor, embora o tempo lhe tivesse roubado a cor.

    Passei a mão com cuidado, como se acariciasse um pássaro frágil. Tentei lembrar por que a guardei. De quem era? Em que momento da minha vida ela se tornou importante o suficiente para ser preservada? Um silêncio alto me incomodava.

    Aquela flor sem história não me dizia nada e carregava uma rama de possibilidades. Lembrança de um encontro no passado? Onde as palavras foram sufocadas e nas páginas, lacradas? Uma paixão breve que deixou seu rastro leve? 

    Quem sabe, um presente da natureza! A flor caída no caminho se dissolveria num jardim vizinho e eu não a deixaria para trás. O livro, então, tornou-se um cofre. Um abrigo onde o tempo não iria tocar. 

    Ou simplesmente por nada. Eu, criança, tentando esconder a flor roubada. Maldade infantil para ver, um dia, suas pétalas amassadas. 

    Seca, prensada entre as palavras, a flor guardou sua história dentro de outras histórias. O dia em que foi colhida, a luz do sol que brilhava no dia que sumiu no livro e hibernou.

    Eu continuo olhando a flor dormente. Nós, humanos, somos assim. Guardamos coisas sem motivo aparente e esquecemos as mais importantes. 

    Fechei o livro. Deixei a flor onde estava. Quieta e deitada, sem interferir.

    Não quis movê-la do lugar, como se respeitasse sua missão...  de me fazer sentir.


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    quarta-feira, 7 de maio de 2025

    TIRANDO AS RODINHAS...


    Ela andava mais de seis quarteirões. Sempre de tardezinha. Logo após lavar a louça, as roupas, ajeitar as coisinhas. E não era fácil a caminhada. Minha mãe na frente e eu do lado, na bicicleta com rodinhas de alumínio cromado. 

    Devia ter uns cinco ou seis anos. As pernas magrelas roçavam no cano da bicicleta e o pedal escapava, ás vezes batendo duramente na canela. Atravessávamos avenidas, ruas e praças cheias de gente pra chegar numa fábrica onde havia uma imensa plataforma. Pista grande, de cimento. Sem gente. Sem movimento. Devia estar desativada há um bom tempo. 

    Ideal para o primeiro teste de liberdade. Ali eu poderia tirar as rodinhas e, enfim, pedalar sozinha, feito gente grande de verdade. Eram três ou quatro tentativas em vão e alguns medos e frustração. Na semana seguinte, tudo se repetia... Que energia a minha mãe tinha. 

    Ela tirava as rodinhas e seguia sempre ao meu lado. Às vezes, um pouco atrás. Eu ia ziguezagueando e entortando. Pondo o pé e parando. Eu vacilava... e lá estava ela em um segundo. Pronta pra me segurar no mundo. Não tinha como cair. Não podia desistir. Ela sorria e me fazia recomeçar.

    Ah, mãe, que falta me faz. Nesses dias inseguros. É tanta gente cortando nossa frente, jogando nossa bicicleta contra os muros... Já tirei as rodinhas faz tempo. Ando sozinha,  todo o tempo. 

    Às vezes olho para trás... e vejo seu sorriso novamente. Meu porto seguro. Amor confiante. Sempre presente, me dizendo — suave, firme, eternamente:

    — Vai, filha. Valente. E sem rodinhas.
    Estou por perto. Segue em frente!




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