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terça-feira, 20 de dezembro de 2022

EU QUERIA... A MEINHA!

Durante muito tempo as festas de Natal foram em minha casa. A família ainda era grande e se reunia em torno da personagem mais agregadora, acolhedora e protetora: minha mãe, forte como leoa, agasalhando os seus.

Com o tempo e os casamentos, a coisa foi sendo espalhada e dividida por outras casas, mas lembro de criança os momentos dos alegres preparativos. A sala ia aos poucos ganhando colorido com bolinhas, presépio, taças e sininhos. Tinha tudo em nossa ceia. Só não tinha a meia... 

Aquela meinha pendurada em cima da lareira. Mesmo que não tivéssemos uma lareira. Podia ser em cima da porta, presa na parede. Eu me lembro que pedia sempre de presente. Mas ninguém dava atenção. Meia não! Meia é feia. Coisa de norte-americano. E eu ficava sem a meia... mais um ano.

Minha mãe bem podia fazer uma de tricô! Era craque com as agulhas. Mas ela sempre adiava. No ano que vem tem! E eu ficava sem a meia outra vez.

Os Natais foram mudando ao longo dos anos. Famílias novas foram se formando. Quem passa o Natal com quem? O irmão mais velho não vem. O outro irá primeiro na sogra, depois na Dona Olga. E a tia Tereza? Foi morar em Fortaleza! O Natal foi se esvaindo e as pessoas se embaralhando. A figura central da minha mãe diminuía seu papel, mas mantinha seu tamanho.

Um ano ela prometeu fazer a meinha em tricô com restos de lã nas cores vermelho e branco. Meu coração bateu de espanto e o trabalho manual começou. Dia após dia, a meimha crescia. Até que uma forte gripe atrapalhou a confecção. Precisando de descanso, a meia pela metade ficou. Não tive coragem de cobrar a tarefa. Fiquei quieta.

Dias antes do Natal vasculhei o armário e achei o meião de futebol do meu irmão. Abóbora com verde. Qualquer cor valia. Alarguei a boca da meia, coloquei uma fita vermelha e quando ia pregar na parede, fui pega em flagrante com a peça na mão. - O meu meião, não!

Mais um Natal com ceia e sem meia. Eu não ligava para os presentes que ganhava. Ter a família por perto bastava. 

Hoje, restam as lembranças das festas grandes do tempo de criança. Eu até tinha esquecido da meinha tão desejada. Deve ter ficado numa gaveta da memória entocada. 

Mas ainda dá tempo. Vou ver se compro uma pra colocar em cima da porta. 

Papai Noel este ano vai sorrir para mim.

- Conseguiu, enfim!

 

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sábado, 10 de dezembro de 2022

O SORVETE DE LIMÃO...


Era um sorvete pra cada dia. Um sentimento diferente pra cada sabor. Na maioria das vezes, eu pedia de chocolate ou de coco. Eu variava muito pouco. Não havia sabores como milho ou pistache. Pelo menos, na venda do pai do João. Mas lá tinha o alegre sorvete de limão.

Tenho pra mim que o sorvete de limão era especial. Eu pedia nos dias mais felizes. Em geral, nos dias de sol. Alegria cítrica e natural. O sol alaranjado batia nos rostos adolescentes no recreio cheio de gente. O ar quente subia em bafos do chão. Nestes dias não chovia. E eu pedia o sorvete branco de limão. Era o azedo na língua. Uma explosão de saliva. Cheiro de capim cortado e de flor.

Andei experimentando novos sabores ultimamente. Sorvetes por quilo. Sorvetes quentes. Sorvetes na chapa. Sorvetes em copão. Mas nada me tira da lembrança o sabor de criança do sorvete de limão, da venda do pai do João. 
Outro dia, ousei misturar um crocante de baunilha com guaraná e seriguela. Por cima, cobertura de confetes e geleia, tudo na mesma tigela. Coisas de sorveteria moderna. Entornei dois copos de água à força e sem piscar. Só pra neutralizar.

Os novos tempos trazem sabores que a gente tende a experimentar. Mas por que não repetir o velho e bom sorvete de limão? Aquele famoso, no palito? Compartilhando com os antigos amigos a mesma emoção?

Talvez tenhamos medo de não encontrar o sabor antigo. Nem os velhos amigos. Nem o gosto da infância das papilas, ainda crianças.
Nem os dias leves de um verão, que ficaram lá... na venda do pai do João.   



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terça-feira, 6 de dezembro de 2022

HOJE EU SAIO NA CHUVA...

Eu saía na chuva. Brincava no meu quintal, colhendo com as mãos os pingos grossos que caiam feito patacas esfriando o chão. Era a alegria que vinha do céu nas tardes de verão. As gotas desciam pela minha cabeça até os meus pés descalços. No piso liso, um pouco de sabão. Eu deslizava em engraçadas lambanças e escorregões.

Eu saía na chuva. Lembro dos pés encharcados dentro do sapato de couro alemão. A meia empapuçada. Eu batia os pés nas poças do chão. Chegava do colégio em total desalinho. Secava na toalha, guardando no coração o cenário alagado e festivo do caminho. 

Eu saia na chuva, sim. Em especial no jardim. Quando a chuva cessava eu abaixava os galhos das árvores para me molhar um pouco mais. Eu era flexível como os galhos finos. Feliz como o mato molhado, nutrido e saciado. Era a menina ainda verde, buscando água para amadurecer.

Eu saia na chuva até pouco tempo atrás, no meu entardecer.

Hoje, sob um guarda-chuva barato, ando pelas ruas com sapatos apertados. Vejo a secura das pessoas que seguem com passos acelerados. Seguem rápido para voltar rápido. Os anos pesam. Meu caminhar é cansado.    

Mas o verão continua, com suas chuvas vigorosas. O céu chora e a natureza se descontrola. A água vem forte do céu, caudalosa. 

Hoje vou sair na chuva! Vou dançar de novo, chapinhando nas ruas. Vou rodopiar e subir no poste feito a cena da Broadway.    

O que salva minha alma da secura... é essa gota interna, livre,  louca... e sem censura.


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terça-feira, 29 de novembro de 2022

O SOL BRILHA... NO FINAL


Não era sol e chuva. Era chuva e sol. Eu sempre botava  a esperança no final. Assoprava as nuvens escuras com o pensamento e esperava o momento do astro rei voltar. Coisas de criança que a gente traz na alma feito as canções infantis. E a brincadeira tola de menina, hoje é a luz que me anima.

Vivemos tempos de contrastes. Nuvens escuras e poucos raios de ternura. Um vai e vem de esperança danado num universo todo bagunçado. Dias que viram noites. Chuvas gigantes. A gente balança. O coração se cansa. Nossa alma é castigada.

Nessas horas eu converso com as plantas e as árvores nas paisagens. Olho os pássaros que continuam parados, cantando sobre os galhos. O vento ventando carregando as folhas escuras. Flores novas despontam fortes e lindas. A vida segue sem guinadas. Amanhece no final de cada madrugada. E um grilo sozinho rompe o silêncio de uma noite inteira.

Recebi uma foto do céu emburrado e cinzento no fim de tarde paulistano, clicado da  janela. Entre nuvens e trovões, raios de sol alegres despontavam. Olhei a imagem que me provocava... Chuva e sol? Ou sol e chuva?

Primeiro a chuva. Deixo o sol pro final. Dispenso a viúva. Vou sem capa e guarda-chuva no casamento do Espanhol! 

E quando a humanidade me desanima com suas maldades e loucuras... eu procuro as árvores, as flores e os pássaros.                   A natureza me cura.


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domingo, 6 de novembro de 2022

A MENINA ESCONDIDA...

No meio de tudo. No lugar mais fundo. Num canto do mundo. Eu sentava junto à janela numa poltrona velha, com uns livros sem muito interesse pra ler...

A menina dos olhos de interrogação chegou do nada. Parou na minha frente, me olhando fixamente, com ar de preocupação...

O que você quer? Ela não respondeu.

De certo reparou meus cabelos grisalhos mal pintados. Meus óculos desaprumados. Há tempos tenho que ajeitá-los. Deve me achar velha, sessenta e poucos anos, meio matusquela, largada em pensamentos numa casa ainda caiada. Deve estar aqui para alguma empreitada...

Quer alguma coisa, menina?

De certo ela gosta de bolos de nozes, sorvetes, pudins... Eu não tenho feito estas bobagens. Ando comendo coisas ruins. Sem sabor, Nada de mel, pimenta ou sal. Não tenho delícias, não faz mal? A menina olhou sem reagir.

Quer ler comigo? Tenho estes livros repetidos. Os melhores emprestei ou devo ter perdido. Quer um copo d’água sem gelo? Isso ainda tenho para sobreviver...

Quer então um bom conselho ?

Cuide do joelho. A idade chega. E depois dos quarenta, evite o espelho. Todo dia ele assusta. O que não se diz, vira ruga. Mágoa, doença aguda.

A menina dos olhos de interrogação se aproximou...

Você quer é saber de mim? Seu olhar se abrilhantou.

Ando sonolenta, aborrecida. Já fui mais leve e atrevida na infância. Mas tenho ainda uma carinha de esperança lá no fundo que me lembra tanto você...

Quer me dar a mão, sair de casa e brincar no jardim?

A menina enfim sorriu, e correu novamente... pra dentro de mim!


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terça-feira, 1 de novembro de 2022

CARTA AO MEU IRMÃO...

Caro anjo, irmão.                           

Eu prometi que não seria triste. Uma carta simples. Sem pieguices. Acabo de olhar sua foto de infância. Você abraça duas crianças. O primo e o irmão. Você abraçava o mundo. Nosso porto seguro. Ainda me protege nessas bandas angelicais onde andas. Talvez, campos de lavanda? Casa entre nuvens? Atmosferas que não faço ideia. Continuo com meus pés aqui na Terra. Mas ouço daqui, o bater do seu coração...

Olho suas orelhas. Eram de abano ou me engano? Com a idade melhorou. O nariz é que se curvou. Rinite alérgica. Você pingava duas gotas de remédio em cada narina. O lenço dobrado no bolso de trás era Presidente! A tia Zilda dava no Natal, numa caixinha com fita, de presente.  

Eu prometi que não seria triste. Só levezas, lembranças banais, sem as partes que doem mais.

Toquei ontem o disco do James Taylor que você comprou com o seu primeiro salário. Capa branca. Ouvi por inteiro. Depois você deu o dos Beatles. Hard day's night! Você cantava alto demais. Às vezes, imito sua voz e desafino. Você não seria um bom cantor, mas batia um bolão, admito.

O uniforme do Paulistânia ficou comigo. Aquele verde e branco com meião encardido. Não lavo de jeito algum. Ficou com o formato do seu pé. O direito, torto de fazer gols. Você descrevia o lance por inteiro. Talvez fosse um bom narrador.

E aquela minha foto de pequena que você levava na carteira, com rabinho de cavalo e um pintinho nas mãos, eu perdi. Ouvi um pio de tristeza aí de cima? Ou foi cisma? Prometi que não seria triste. Sem pieguices.

Você viu meus livros publicados? Dois só de crônicas como a mamãe e você gostavam. Em breve vou pro terceiro. Se der, mando um exemplar por um pombo ou anjo mensageiro.

O que está ruim mesmo é o mundo que você, sem desejar, nos deixou. Vírus, política, intolerância e guerra, em proporções estratosféricas. O ser humano vendo o mundo acabar e postando memes no celular. O que são memes? Não vale a pena explicar...

Eu prometi que não seria triste. Vou terminar a carta. Ou por aí tem email? Sei que essa foto sua, no meio da tarde... no campinho da rua, me atropelou de um jeito... 

Qualquer hora lhe vejo.... no meio das estrelas e lhe sopro um beijo!

 

 *                         *                            *

                       

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segunda-feira, 17 de outubro de 2022

QUANDO DEIXARAM O PORTÃO ABERTO...


Primeiro saiu a matilha. Seis cachorros assanhados correndo atrás de dois gatos ágeis e arrepiados que subiram sabiamente no telhado.

Depois, o garoto maroto chutou forte a bola para buscar de fininho lá fora. Chamou os vizinhos e formou um timinho. A irmã pequena foi seguindo a borboleta e nem viu que cruzou o portão sem precisar da mão para abrir a maçaneta. Parou encantada no meio da calçada.

Veio a mãe desesperada atrás da garotada. Saiu pelo portão aberto e encontrou os vizinhos alegres e os filhos por perto. Aliviada, sentou para um café e uma prosa bem humorada.

O portão da casa continuava aberto e o carteiro foi entrando e dando de cara com o jardineiro. Elogiou suas rosas mostrando lá fora uma árvore de amoras. Os dois saíram para conferir. Cruzaram o portão e colheram as frutas maduras. enquanto faziam mudas para distribuir.

Até a Tia Zulmira veio vindo com a sua bengala. Foi andado, andando, olhando as rosas e as verduras da horta que ela plantou outrora e chegou até o portão aberto que dava pra a rua. Nunca caminhou tanto sem ajuda. Voltou alegre, como se dançasse uma rumba.

Pelo portão escancarado saíram todos que lá viviam. Alguns sonhos aprisionados e desejos que por dentro escondiam.

Às cinco da tarde, voltaram todos. Até a matilha de cachorros. 

O chefe da casa chegou do trabalho sem perceber o que aconteceu. Sisudo e entediado, fechou de novo com o cadeado o velho e hermético portão. 

Mas agora... todos já tinham... uma cópia da chave na mão!

                  

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segunda-feira, 10 de outubro de 2022

AUTO PERDÃO...


 

Ela expressava seus sentimentos de forma madura. Estou sentindo pena do bichinho. Que aflição isso me deu. Esse filme me entristeceu... Mariana deixava tudo às claras. Um coração que distinguia sutis sentimentos e traduzia em palavras, surpreendendo a cada momento.

Aos três anos, na gangorra, o irmão mais velho insistia em deixá-la suspensa por um longo tempo no ar. Você me faz sentir medo... Por que quer me ver assim? Suas palavras desconsertavam feito um sopro suave e sincero de querubim.

Mariana aprendeu a hierarquia das coisas nas respostas que ouvia da família. Se quebrasse sem querer alguma coisa, alguém dizia... Não tem problema, isso acontece!

Aos seis anos, depois de muito insistir, a vó Olga deixou Mariana brincar com sua coleção de galos! Trazidos de vários países, Portugal, Espanha, Itália, França. Era o xodó da vovó que pediu muito cuidado e colocou mais de vinte galos espalhados pelo tapete da casa. Chame quando enjoar.

Assim que terminou de brincar, Mariana decidiu por ela mesma, recolocar os galos de porcelana na estante alta que ficava sobre a mesa. Na pontinha dos pés e toda empinada, já havia recolocado um bocado, quando cinco deles caíram no chão e espatifaram. A vó Olga entrou correndo, já prevendo o estrago e a provável conclusão.

Com um sorriso cativante, Marianinha se auto perdoou...

- Não tem problema, vovó... Isso acontece! 


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terça-feira, 27 de setembro de 2022

O PEDAÇO FINAL DA TAÇA


Ele colocava milimétricamente as figurinhas. Coisa que eu nunca conseguia. Eu começava bem os meus álbuns na infância, mas bastavam duas ou três semanas e já entortava uma figurinha para a esquerda. Outra avançava a linha de cima. Outra sangrava para um dos lados. Ficavam tortas as páginas do meu lambuzado  e desenquadrado álbum. 

Mas meu irmão não. Ele tinha o dom. Fazia a coisa com técnica e perfeição. Passava o pincel com a medida exata de goma arábica nos quatro cantos por detrás do papel. Calculava com o olhar, indo e vindo, aproximando e voltando, até fixar a figura sem medo, do lado esquerdo. Depois com o dorso da mão esticava a figurinha para ficar lisinha no álbum limpinho e sem muito manuseio. O meu, sempre com as pelotinhas de cola no meio.

Eu tentava consertar, tirando e colocando novamente. Doce ilusão. Rasgava sempre um pedacinho. Eu fazia um remendo, criando um monstrinho, o que era imperdoável para o Silvinho. Passei anos vendo meu irmão preencher seus álbuns na infância. Geralmente de futebol e torneios. Ele preenchia por inteiro. Não era pra qualquer criança, aquele zelo.                                                   

Na hora de abrir o pacotinho tinha um ritual. Rasgava a parte de cima, um centímetro, na horizontal. Colocava as figurinhas sobrepostas e justinhas, uma atrás da outra. Depois ia puxando lentamente a detrás, criando pra si um suspense. Subia lentamente a última delas, desvendando enfim o segredo. Tenho. Tenho. Não tenho! 

O final do álbum era mais tenso. Vários pacotinhos com repetidas. Ele separava dois montinhos com um elástico. O das mais fáceis e o das cobiçadas, prateadas, que por duas ou três figurinhas comuns eram trocadas.                                                                                                  

Num antigo álbum dos anos setenta, faltava só uma para completar a figura da primeira página. O pedaço final da taça. Ele demorou semanas para encontrar. Trocou com um desconhecido. Não deu pra negociar. Pagou com cinco figurinhas e sua bolinha de gude vermelha. Valia a pena. 

Voltou pra casa e colocou a figurinha na página, desta vez, sem colar. Ficou assim por mais de um mês. Tática? Superstição? Compreendi sem perguntar a razão...  Era melhor fingir que faltava sempre uma. Assim continuava trocando com gosto e agora mais generoso.                   

No domingo, dia da final, colou com cuidado a última peça que faltava. Milimétrica e perfeitamente. Na minha frente. Album completado. Folheado e fechado. Era o pedaço final da taça Jules Rimet. Fomos para frente da Tevê.  4 a 1 pro Brasil! Penso que meu irmão, supersticioso, contribuiu. 

E eu... que colei o Jairzinho, no lugar do Tostão? Ainda bem que ele não viu.


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quarta-feira, 7 de setembro de 2022

A MARRA... E A BENGALA!

Não vai sozinho até o orquidário. Cuidado com a quina do armário. Não esquece o agasalho. As palavras entravam por um ouvido e saiam pelo outro de fininho.

Bastava eu passar pela porta, lá ia o seo Sylvio do jeito que bem entendesse, caminhando lento, errando os endereços, atravessando ruas e avenidas perigosas e tirando fininha das carros. Ninguém lhe botava freio, muito menos agasalho. 

Levava incontáveis tombos, mas não quebrava muita coisa. Os anjos já o conheciam e o protegiam, numa espécie de acordo.  Havia sempre um roxinho nas mãos e no ombro. Arranhava a testa e os joelhos. Pra diminuir nosso receio e cuidar da sua velha rebeldia, pagamos a Dona Luzia que cozinhava e lembrava dos seus dezessete remédios por dia. Para o estômago, coração, pressão, disfagia...

Na última vez, meu pai caiu no meio da calçada. Meu irmão encontrou, então a solução. Comprou uma bengala! Daquelas feias, de quatro garras curvadas. Deixei na entrada da casa e olhei de esguio o semblante de meu pai com panca de desprezo e cheio de indignação. - Foi presente do meu irmão! Fui embora, sem dar maior explicação.

A semana passou e seo Sylvio me chamou para uma conversa séria. Senta aqui e presta atenção. Liga pro seu irmão e diz que eu não preciso dessa bengala de garra. Tira ela da sala! Eu nunca vou usar essa... lambisgaia!

Terminou o seu discurso de marra com a questão definitiva na ponta da língua... - quem é que manda em mim, ainda?

Sorri, dando lhe um beijo de mãe e filha em sua testa ferida, marcada pelas rugas, recentes machucados e sinais dos anos de vida. E devolvendo o mínimo da sua autoridade, falei com desprendimento e amor... - quem manda é o senhor!

Fui embora, pedindo aos anjos que reforçassem a proteção.

 

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segunda-feira, 29 de agosto de 2022

DEITADINHA...

                                                             
Eu procurava o único pedacinho de sol da manhã e deitava no azulejo quentinho do meu quintal. A casa era fria nos dias de inverno e a luz artificial não aquecia. Eu recarregava a minha bateria naquele cantinho nos ensolarados dias.

O colégio tinha um pátio grande e uma palmeira imponente no meio. Eu corria para ela no recreio. Lanche na mão e a alegria de sentar ao sol no quadrado de terra descoberto olhando o céu aberto. O sol a pino. Eu sem teto.

Os anos adultos e duros vieram. O tom pálido diário do trabalho. Dias de escritório. Os pais mais velhos recolhidos em seus apartamentos de escuras cortinas. Junto deles, minha rotina cuidadora de filha. Nas pausas eu corria até a praia e deitava na areia. Esteira em frente ao mar para ver o por do sol e minha alma úmida secar. Alguns minutos bastavam para o amor de novo me ensolarar.

Os colibris saem de manhã com um mínimo de energia. Precisam achar rapidamente comida para ganhar simplesmente a vida. Batem asas num movimento absurdo, oitenta vezes por segundo. De flor em flor vertendo a energia para sobreviver a cada dia. Vivem no limite.

Um mini-colibri minúsculo é o único que descansa profundo. Tão pequenino, ele se deita numa folha e hiberna por poucos segundos. Depois volta ao mundo.

Olhei ele na foto deitadinho. E me vi na folha, num dia frio...  naquele meu quintal quentinho.       

 

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foto: Revista Pazes/Raul Simgh

terça-feira, 23 de agosto de 2022

MEU QUARTO OITENTÃO...


Demorei um tempão na confecção. Cada foto tinha um porquê. Um coração na revista. Um anúncio de tintas. Um ator de tevê. Os posters maiores em destaque. Fotos de cantores pops em coloridos almanaques. Capas de LPs.

A parede da casa, com muitas ressalvas, era a mãe que doava para a obra artística com ares amadores e quase sempre inacabada. Geralmente num quartinho escondido. Às vezes, a parede do próprio quarto, para privilegiados.

O melhor amigo ou amiga vinha ajudar nos recortes. Revistas da moda. Contigo, Carícia, Pop, Placar, Quatro rodas... Valia adesivo, selo, receitas, envelopes. Tamanhos diferentes, para não deixar careta a composição paredesca anos oitenta. Toda colorida, com letras distorcidas. Figuras do rock, cabelos enormes, blazers com ombreiras. Excessiva e psicodélica pintura. Muito de inocência querendo ser loucura. 

A cola branca diluída em água fria fazia a pasmaçada. O pincel era qualquer um de tinta que a gente encontrava. Cada figura colada, um novo aleatório desenho se formando. Como se revelando o caledoscópio das nossas almas.

Cores e nomes em sobreposição. Idolos emergindo no papel da parede que embalava a geração. Coração analógico e estudantil. Mostra e diversidade multicor daquele Brasil.

A parede dos anos oitenta! Retalhos de momentos adolescentes. Mistura de rocknroll, mpb, meias coloridas e golas diferentes.

Era a nossa Internet... na parede!  


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segunda-feira, 8 de agosto de 2022

NO ESPELHO É MAIS FÁCIL...


Ela ensaiou horas diante do espelho. Decorou frases de efeito tiradas de um livro de autoajuda perfeito. Buscou as palavras mais duras. Um misto de amor e amargura. Uma conversa sem freios e rodeios. Flechas certeiras no coração do ex companheiro.  

Planejou um choro discreto.  Muito equilíbrio e um resto de afeto. Discurso perfeito para um encontro casual. No saguão do restaurante habitual ou no caminho do toillete. Imaginou-se de vestido leve, salto alto e olhar sexy... Ele com ar cansado, saindo do trabalho e expressão de arrependimento.

Finalmente diria o que tinha guardado por anos. A dor da traição. A solidão, o desabar dos seus sonhos. O quanto foi cruel seu parceiro, desprezível e desumano. Nem os cinco dias, dois meses e seis anos, tinham conseguido apagar... 

Não foi assim que se deu. Naquele sábado tumultuado ela entrou no mercado do Nereu. Bermuda velha, chinelo velho e cabelo que ela mesma prendeu. Ele estacionou em frente com sua Mercedes reluzente. De terno elegante, ar de contente e um par de óculos escuros. Os dois se cruzavam, agora mais maduros... 

- Beatriz? 
- Joa...quim!
- Parece nervosa! 
- Bobagem... Estou bem. Bem feliz. 
- Ótimo, estou com pressa! E partiu dando um beijo frio em sua testa... 

Beatriz engoliu todas as palavras pensadas, por mais seis anos, dois meses e incontáveis dias. 
A vida é sem ensaio, Bia. É à revelia...

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quarta-feira, 3 de agosto de 2022

DE BEM, NOVAMENTE!


Ele disse que sabe cantar o Hino nacional de ponta a ponta! Sem errar nenhum pedaço. Sabe o que eu acho? Ele está me enganando...

E lá se foi o Sílvio carregando o peso dos seus oitenta anos. Passos lentos e ritmados, pela calçada da vizinhança, até encontrar uma papelaria. Queria achar aqueles cadernos antigos que tinham o hino nacional estampado na parte de trás. Não existiam mais!

Tivemos que imprimir o hino, em letras garrafais, só pra ele conferir... E não é que o Flávio sabe mesmo? Cantou direitinho. Do ouviram do Ipiranga até o finalzinho... Pátria amada, Brasil! Cantarolou e sorriu...

Era uma amizade tardia. Feita na vizinhança. Por quem sabe que é preciso um amigo por perto. Mesmo que esse amigo não esteja sempre certo. A amizade dos sozinhos. Dos velhos e vizinhos. Que contam da vida e seus amores. Dividem as dores, bulas, remédios e dissabores...

Quando quebrava o chuveiro, o Sílvio chamava o Flávio pra consertar. - Não precisa pagar o conserto. Mas o café, eu aceito! Era sempre na mesma padaria. Quase todo dia.
- Desse jeito vai sair caro. O Silvio se divertia... 

De noite ou de dia viviam se cruzando na vizinhança. Sem muito combinar. Sabiam os horários que estariam por lá. Prontos para prosear. Riam e brincavam. Às vezes brigavam. Eram dias sem se falar...

Encontrei o Silvio chateado... Briguei com o Flávio. Ele me ofendeu. O Flavio então apareceu, triste e cabisbaixo. Olhou para o amigo Silvio e reconheceu... Eu queria pedir desculpas. Mas você é mais teimoso que eu!

Peguei o dedinho mindinho dos dois velhinhos e promovi a reconciliação. Que tal um café na padaria? - Dessa vez eu pago, disse o Flávio, sorridente.  - Até que enfim! Silvio alegremente "alegreceu"... 

E as duas velhas crianças seguiram em frente. Passos lentos... 
Amigos, novamente!


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Foto:Getty Images/iStockphoto
Informações extraídas do IPTC Photo Metadata





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quarta-feira, 20 de julho de 2022

A FLOR COM FRIO...



Os três irmãos vestiam os pijamas quentinhos por dentro da calça. Camisa de manga longa debaixo de uma malha grossa. Gola alta até o pescoço e um gorro que cobria a pontinha das orelhas. Só o nariz desencapado e as bochechas vermelhas realçavam a pele lisinha entre sorrisos alegres e gelados.

A caminhada pela fria trilha de Campos começava. As crianças e as flores superavam o frio em diferentes arrepios. Cada um do seu jeito, metabolismo e sentimento.  Na mata, pétalas de flores vidradas com uma película de água condensada desenhavam um cenário de quase neve. Ares europeus. Uma flor amarela se destacava gelificada entre elas. As flores deviam estar acostumadas. As crianças, não.

No caminho da fria estrada, árvores de pera d’água. Todas duras. Quase deixavam na polpa os dentinhos de leite encravados. Mais abaixo, uma paisagem de mato queimado e orvalhado.

O passeio deu energia às crianças. Alugaram bicicletas. Alegres no caminho plano. Na subida das ladeiras vinha o desânimo. Cada um carregava suas rodas e mochilas pesadas nas costas. O irmão mais velho vibrava a cada aragem mais fria. Sua alma invernada sorria. Foi feito para o frio.

Nem mesmo ao meio dia a coisa esquentou. Uma chuvinha veio. O frio aumentou um grau e meio. E o vapor mais quente se via saindo das bocas falantes.

O irmão do meio lembrou do café quentinho. Da casa e da lareira. Já tinha valido a pena. Enquanto o mais velho se deleitava e sorria, como um pinguim feliz na Oceania.

Eu era a florzinha friorenta que sofria. No caminho de volta pelo campo florido um radar de sentimentos me conduzia. Guiada por um perfume imaginário atravessei o mato alto que delicadamente me prendia com seus galhinhos secos e magros. Avistei a flor amarela. Abaixei gentilmente até ela. Assoprei o hálito quente nas minhas mãos e rodeei suas pétalas lisinhas. Aquelas que quase congelaram naquela manhã fria. 

As florezinhas e as meninas preferem o calor. Falei, segurando a mão quente dos irmãos como quem agarra um cobertor.                                  

Era a minha alma congelada pedindo para voltar pra casa.


 

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terça-feira, 12 de julho de 2022

CHAPÉU DE PALHA...

“Eu vou pra Maracangalha”. Deve ser um bom lugar pra descansar. Lá nas bandas da Bahia, com uma pracinha e um banco largo pra gente sentar. Lugar quente. Dorival Caymi levava o chapéu de palha. Posso levar...

Mas como deve ser calma a tal Maracangalha, talvez prefira algo mais agitado, com bebida, dança e batucado. Melhor ir para a Esbórnia! Seria um país? Um estado de embriaguês? Perto da Rússia? Prússia. Ou um povoado Galês? Certamente faz frio. Diferente do Brasil. Um lugar de boemia onde não são muito boas as companhias. Sozinho, não se vai pra Esbórnia. Em excursão, eu jamais iria!

Vou me embora é pra Pasárgada! Ali sim, é outra civilização. Manoel Bandeira descreveu tão bem. Mas ele era amigo... e eu nem conheço o Rei! 

Distante mesmo é onde Judas perdeu as botas. Os antigos iam muito pra lá. Depois, saiu de moda o longínquo lugar. Os jovens não conhecem. É longe pra danar. Pior é ir pra Tonga da Mironga do Kabuletê. Onde deve ser? Vinícius devia saber...

Vou mesmo é para Shangri-lá! Dispenso a trilha de Burt Bacarat. Vou no silêncio e no abandono. Lá, as praias são de sonho. O céu, azul clarinho. Campos em flor, belas montanhas e caminhos. Noites regadas a vinho. E todo céu escuro clareia com luar.

Fechado! Vou pra Shangri-lá! Vou devagar feito Caymi, com um chapéu de palha pra refrescar. Não sei se volto. E já vou avisando... vou sem celular!

                                                              

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terça-feira, 17 de maio de 2022

A MENINA E O RÁDIO...

Eu levava o rádio de pilha para o quarto. Deitava na cama me aninhando nos cobertores, colocando o velho parceiro ao lado do travesseiro, perto do ouvido. Eu gostava das ondas curtas. O som que se alongava e encurtava. Indo e vindo em chiados e línguas estranhas. Fantasmas que falavam. O sussurrado me levava além da janela do meu pequeno quarto. A cada nuvem de som eu intuía um lugar, um país, conversas miúdas que prendiam minha atenção. Era um mundo novo em cada girar do botão.

Às vezes, eu sintonizava uma rádio de Berlim ou de Moscou. Alemão ou russo? Quase dormindo eu me perguntava. Pequena, não entendia nada.

Girava novamente o botão e a imaginação. O que viria a seguir? Adorava a surpresa. O que vem na próxima estação? O coração batia baixinho para ouvir o radinho que falava comigo nas noites silenciosas.

Os jogos de futebol do Rio eram quartas à noite. Eu ouvia um gol que vinha de longe se amplificando. Sentia a explosão do Maracanã vibrando. Uma mistura de torcida e zumbido reverberando.

Não curto mais ondas curtas. Notícias da Áustria. Folclore da Alemanha. Músicas do Japão... Mas continuo girando o botão num vaivém danado. Ouço as notícias atuais e prefiro as músicas do passado.

Continuo presa à surpresa. E as canções que de repente me comovem. Por isso ele continua por perto. No carro. Na sala. No quarto. Pronto para ser acionado.

Aquele velho radinho de pilha de botões prateados está no armário. E numa caixa de lembranças cheia de músicas e sons que ainda soa no peito. Sentimento antigo e profundo. 

Com ele, eu sintonizava o mundo!


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As chamadas ondas curtas utilizam frequências compreendidas entre os 3 000 kHz, a frequência acima da qual predomina a propagação ionosférica, e os 30 000 kHz (3 - 30 MHz).[1] A reflexão na ionosfera permite cobrir extensas regiões e atingir pontos da superfície terrestre situados a milhares de quilómetros de distância a partir de uma única antena emissora.


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terça-feira, 10 de maio de 2022

BENÇÃO AO FILHO...


Toco a palmeira com a mão como quem abençoa o filho crescido. Seu cerne vibra comigo. Feito a lenda do João, o meu pé de feijão ruma ao infinito...

O terreno era mal aterrado. Só entulho, madeira, ferro retorcido. Pouca terra boa num chão batido. Ganhei a palmeira magrinha. Trouxe pequenininha. O jardineiro sem muita certeza afirmou ser palmeira real e que chegaria a seis metros apenas. Foi um grande engano ou simples brincadeira.

Veio com três folhinhas retorcidas e finas. O tronco, cintura de bailarina. Fizemos o buraco e plantamos, abençoando com a água da chuva que caia. Nossas roupas, sujas de terra, coloriam o batismo da filha. 

E não é que a lenda se refez? A espichada foi crescendo. O tronco alargando e cheio de água, retumbando. Abraçar, quem dera. Não consigo mais. Olho para o céu avistando suas grandes folhas que acenam e balançam. Querem me dizer... olá, sou eu! Cresci, mas continuo te amando. 

Sinto saudades de quando era pequena e eu podia circundar seu tronco com meus braços e acariciar suas folhinhas. O tempo passa, crescem rápido as criancinhas.

Um amigo disse que chegando ao topo vou encontrar meu pote de ouro. Que tolo! O pote já está no meu jardim. Nas orquídeas. Nas helicônias. No flamboyant que acolhe os colibris. Nas bromélias e nas suculentas espalhadas aqui e ali.

Até meu coqueiro anão cresceu. Ficou alto e forte. Dá vinte a trinta cocos em cada ramada. De anão não tem nada. Coisa engraçada. Jogaram um fermento do bom. Ou é coisa de um Deus brincalhão!  

Toco árvores. Acaricio arbustos. Beijo flor. Gosto de sentir o enlace sem qualquer pudor. Na grama verde minha alma se rende... e se entrega a esse amor!


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quarta-feira, 27 de abril de 2022

ESCADA DA INFÂNCIA...


Eu tinha mudado para um belo apartamento numa famosa avenida de São Paulo. O único no prédio que tinha dois quintais. O da frente e o de trás. Sala imensa. Um sofá branco, estante com livros de filosofia e um piano no canto que me dava certa melancolia.

A nova realidade não entrava pelos meus poros como a poeira e a fumaça dos carros que passavam na grande avenida. Minha alma de criança ainda brincava modesta, feito a casinha simples e honesta deixada pra trás. E agora eu tinha dois quintais. O da frente e o de trás!

No quintal dos fundos meus sonhos corriam soltos. Lá eu tinha o mundo. Uma bola. Um chão pra escorregar. E uma escada colada ao pé do muro pra subir e sonhar. 

O paredão separava minha casa de uma espécie de cortiço. Muitos imigrantes se instalavam neste tipo de moradia. Em cada quarto, uma família. Dez, doze pessoas. Enquanto não conseguiam melhores condições, dormiam empilhados, sem camas, só colchões. Era o retrato do bairro do Brás, anos atrás.           

Eu chegava do colégio e almoçava. Antes das tarefas, pegava a bola e brincava. No quintal de trás...

Um riso de criança do outro lado do muro roubou minha atenção. Chamei e ninguém respondeu. No dia seguinte se repetiu. Escalei a escada e olhei do alto do abismo, o garoto de olhos singelos. Sem chinelos. Só de calções. Dei lhe um sorriso. 

Brincava sozinho com uma espada de vassoura improvisada e quando me viu se escondeu. Joguei a bola por sobre o muro e subi na escada para ver sua tentativa atrapalhada de me devolver. Chuta forte, menino! O franzino, enfim conseguiu! Sorrimos. 

Durante meses dividimos as tardes e as brincadeiras. Eu de um lado e ele do outro. Nem ousávamos nos encontrar de outra maneira. Havia a vida. Realidades distintas. Um muro maior e invisível. Quase intransponível.                             Até minha mãe me matricular à tarde nas aulas de piano. Nunca mais brincamos. O pequeno amigo começou a trabalhar. Lustrar e engraxar.

Deve ter ficado triste. Eu fiquei. Eu não sabia seu nome, nem ele o meu. Éramos duas crianças. Vizinhas, felizes, em flor. 

E um muro alto e difícil. Mas não impossível de transpor!


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