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sexta-feira, 21 de julho de 2023

O BIFE!



O casarão era enorme. Como tantos na Avenida Paulista. Muros brancos e um portão alto de ferro trabalhado, no estilo dos grandes palácios. 

Um funcionário abria o portão e seguíamos por um caminho que cortava todo o jardim até a escada de mármore da entrada. Havia um brasão da família na parede rosada. De metal, com uma coroa e duas espadas. Embaixo escrito, Barão do café. Eu não sabia o que significava aquilo. Não me impressionava. Achava o desenho bonito. Depois, vinha outra porta de madeira e estávamos na sala, com poucos móveis espalhados, quase vazia, que ecoava...   
                               
Tia Clarice ao fundo tocava lindamente seu piano branco. Olhos fechados, nem percebia os netos que cruzavam do seu lado com risos altos. Quando dava a última nota, ela voltava à tona. Abria seus olhos como quem acordasse de um sonho, ressurgindo para a vida real. Temos visita! Que lindas. 

Minha mãe sorria e elas se abraçavam no meio do salão. Logo seguiam para a copa tomar um café. Eu despistava, demorava um pouquinho e sozinha, sem que ninguém me visse, sentava no banquinho ajeitando a saia como fazia a tia Clarisse. Eu tocava... o bife! 
Ninguém me ouvia, nem as crianças no jardim, nem as duas amigas, entretidas em conversas animadas sobre livros e a vida. Eu ali sentada era a maior pianista do mundo. 

O piano foi sempre presente em minha vida. Não por mim, que me dediquei a instrumentos menos clássicos e menores. Mas pela família, como uma espécie de trilha, às vezes feliz, outras vezes melancólica, acompanhando nossas histórias. 

Meu irmão tocava, em casa, as primeiras canções de Tom Jobim. Lembro da graça e a elegância com que ele intercalava as pretas e as brancas. Eu esperava, sempre no final, o convite. Vamos tocar o bife? Quatro mãos! Eu e meu irmão. E junto com as notas duplas e divertidas, minha alma tocada se desdobrava e acompanhava os dois dedinhos que martelavam alegres e pequeninos. 

Minha mãe contou uma espécie de plano. Seus pais e ela foram convidados para ver meu pai, jovem, tocar piano. Era uma valsa, Strauss, se não me engano. Ele tocou e fisgou seu coração. Depois, meu pai dela se esqueceu. Era cena apenas. Minha mãe, com o tempo compreendeu.

O piano continua nas minhas memórias simples de família. 
Saudade do meu pai, do meu irmão, tia Clarice. 
E de mim mesma, quando apenas tocava... o bife!

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obrigada!

Um comentário:

  1. Lembranças tão lindas, não dá pra esquecer tanta vida compartilhada.
    Ficam pra sempre dentro do coração.

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