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quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

A LENDA DA PORTEIRA...

                               
Eu pedia para ele repetir sempre a mesma história. Com os mesmos detalhes. Meu pai, cansado e com a impaciência “napoletana”, repetia as lendas do antigo bairro do Brás. Eu sentia em cada lugar saudosamente descrito, um pedacinho da Itália no coração de São Paulo. No coração do meu pai... 

Eu me encantava com a chegada dos imigrantes italianos em navios. A maioria, trabalhadores do campo. Que falavam cantando e gesticulando com as mãos. Eu agora os via sentados, nas cadeiras nas calçadas, nos finais de tarde, a “parlare”. Eles vinham do Porto de Santos, passando pela Estação do Brás, e Jundiaí era o destino. Lá havia produção de uvas e de vinho. 

Os que ficavam no Brás, em geral, abriam um comércio vizinho. Pizzarias. Cantinas. E empórios com salames e provolones pendurados. Vinhos engarrafados e toalhas xadrezes, verdes e vermelhas, sobre as mesas... Tudo era um filme na minha cabeça e eu esperava ansiosa a história do vendedor de leite de cabras. A porteira do Brás era um sinal que a história ia passar... 

Aberta manualmente, depois que o trem passava, a porteira causava aglomeração. Carros, carroças, pessoas e confusão. Nas ruas mais estreitas, como a do Hipódromo, havia só uma cancela. Com acionamento elétrico. O trem passava e dentro da cabina, um funcionário acionava. Foi numa dessas cancelas que o berro de mistério aconteceu...

O velho conhecido senhor judeu vendia o leite de cabras. Todas as tardes, ele batia na porta das vendas e das casas. Ordenhava ali, na hora, o leite quente e fresquinho. Ele segurava uma corda que, feito um leque, tinha uma cabra em cada ponta. Eram três cabritinhas. E era comum estacionar os animais em alguma local, para tomar água e dar descanso às bichinhas. 

Um dia, por descuido, ele amarrou as cabritas na cancela. O trem passou e a cancela subiu. O que se viu foi gente gritando aflita: - Chama o moço! - Chama o moço! As cabritas estão subindo pelo pescoço! 

Duas cabritas saíram ilesas e uma ficou levemente ferida. Talvez meu pai tenha mentido. Alguma deve ter morrido. Mas ele sabia que eu não queria esse fim. 

Durante muito tempo, pensei que fosse uma lenda ou uma história inventada por um pai querendo fazer graça. Mas encontrei relatos do fato. Se aconteceu desse jeito eu não sei, sabe como são os italianos... vão “parlando, parlando, parlando ”, até cruzarem o oceano...


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Foto e outras informações

Lenda citada na crônica, aparece no documentário "Brás, sotaques e desmemórias", 
de Lourenço Diaféria
https://youtu.be/XV-rS1q7Rh4



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10 comentários:

  1. Q estorinha mais bonitinha, real ou não.
    Nunca tinha ouvido falar desse vendedor, só sei q agora, lendo,estava curiosa c/ o desenrolar da estória, imaginando vc, loirinha e atenta, Seu Sylvio, c/ a voz meio rouca, olhinhos azuis e risinho sapeca, querendo entreter vc c/ o destino das três cabritinhas, q eu tb queria saber aonde foram parar..
    Adorei e aprendi... rs

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  2. Da lenda eu não sei mas da porteira do Brás minha sogra contava sempre como era passar por lá toda vez que ia de Suzano pra São Paulo no trem, da Maria fumaça que sempre sujava as roupas por causa das fagulhas da madeira deve ter sido incrível viver naquela época

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    1. As fagulhas soltavam, sim, e sujavam realmente as roupas... E quanto à lenda ... também é verdadeira. Descobri em um vídeo da crônica de Lorenço Diaféria... obrigada por visitar o blog!

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  3. Lourenço Diaderia era muito bom nessas crônicas. Lia-i na Folha de São Paulo. Certa vez ele.publicou uma: "BIM ERA NO TEMPO DO BONDE". Nela, ele falava as peripécias dos cobradores dos bondes.

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  4. Lourenço Diaderia era muito bom nessas crônicas. Lia-i na Folha de São Paulo. Certa vez ele.publicou uma: "BIM ERA NO TEMPO DO BONDE". Nela, ele falava as peripécias dos cobradores dos bondes.

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    1. Lourenço Diaféria era fantástico! Eu adorava lê-lo! abraço, Paulo!

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  5. Respostas
    1. Obrigada pela visita ao blog... Temos outras histórias de São Paulo... se tiver tempo... A buzina da Baratinha.... Quando eu pagava meia... e outras mais... Abraços e obrigada pela leitura!

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