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terça-feira, 20 de maio de 2025

SOFIA... QUEM DIRIA!


Os seios enormes balançavam e saltavam dentro do decote à medida que ela caminhava. Trôpega, saindo pelo portão de ferro em direção à rua. O salto quinze, de pelica, em uma das mãos. E um longo vestido que arrastava papeizinhos amassados, tampinhas e bitucas de cigarro. A barra dupla, já meio suja, rente ao chão...


Partiu ziguezagueando pela calçada no meio da madrugada num bate papo interno e solitário. Alcoólico. Hiperbólico. Melancólico. Na boca, risos, lágrimas e borras de batom. 
-É a Dona Sofia! Ela tem saído assim nas últimas semanas, depois da separação, completou o porteiro do clube noturno, com ar de compaixão. Fui acompanhando o seu trajeto mambembe pelas ruas desertas, imaginando os estragos do desamor. 

Talvez, um casamento de indiferença. Conveniência. Ou uma relação de muitos anos, com apegos financeiros. Briga por dinheiro! Ou, a descoberta de uma amante mais jovem. Uma mulher. Quem sabe, um homem? Ou nada disso. Apenas um porre! 
Para afastar a solidão de nunca ter encontrado um amor desses desenfreados. De tirar a roupa e os sapatos. Pode ter tido tentativas frustradas ou apostas em pessoas erradas.
 
A mulher cambaleante seguiu até virar a esquina e sumir na trilha escura da rua, e  dos meus pensamentos. Coisa de momentos. Tão humanos certos tropeços...

Na semana seguinte, saindo do médico, encontrei a Dona Sofia. 
Andar reto. Terno tubinho, todo fechado. Scarpin baixo. Figurino fino. Cumprimentou brevemente a secretária, deixando o consultório olhando de resvalo, com seus óculos meio grau e um ar profissional.

Perguntei quem era, só para me certificar... -Dona Sofia! Ela é terapeuta de casais! Conserta a vida amorosa de todo mundo. 

Dona Sofia, balbuceiei baixinho... quem diria?



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terça-feira, 13 de maio de 2025

A FLOR GUARDADA

Entre as páginas amareladas e o cheiro de papel envelhecido encontrei a flor presa e amassada. 

Era um arremedo de flor, aparência seca e desmontada, mas ainda flor, embora o tempo lhe tivesse roubado a cor.

Passei a mão com cuidado, como se acariciasse um pássaro frágil. Tentei lembrar por que a guardei. De quem era? Em que momento da minha vida ela se tornou importante o suficiente para ser preservada? Um silêncio alto me incomodava.

Aquela flor sem história não me dizia nada e carregava uma rama de possibilidades. Lembrança de um encontro no passado? Onde as palavras foram sufocadas e nas páginas, lacradas? Uma paixão breve que deixou seu rastro leve? 

Quem sabe, um presente da natureza! A flor caída no caminho se dissolveria num jardim vizinho e eu não a deixaria para trás. O livro, então, tornou-se um cofre. Um abrigo onde o tempo não iria tocar. 

Ou simplesmente por nada. Eu, criança, tentando esconder a flor roubada. Maldade infantil para ver, um dia, suas pétalas amassadas. 

Seca, prensada entre as palavras, a flor guardou sua história dentro de outras histórias. O dia em que foi colhida, a luz do sol que brilhava no dia que sumiu no livro e hibernou.

Eu continuo olhando a flor dormente. Nós, humanos, somos assim. Guardamos coisas sem motivo aparente e esquecemos as mais importantes. 

Fechei o livro. Deixei a flor onde estava. Quieta e deitada, sem interferir.

Não quis movê-la do lugar, como se respeitasse sua missão...  de me fazer sentir.


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quarta-feira, 7 de maio de 2025

TIRANDO AS RODINHAS...


Ela andava mais de seis quarteirões. Sempre de tardezinha. Logo após lavar a louça, as roupas, ajeitar as coisinhas. E não era fácil a caminhada. Minha mãe na frente e eu do lado, na bicicleta com rodinhas de alumínio cromado. 

Devia ter uns cinco ou seis anos. As pernas magrelas roçavam no cano da bicicleta e o pedal escapava, ás vezes batendo duramente na canela. Atravessávamos avenidas, ruas e praças cheias de gente pra chegar numa fábrica onde havia uma imensa plataforma. Pista grande, de cimento. Sem gente. Sem movimento. Devia estar desativada há um bom tempo. 

Ideal para o primeiro teste de liberdade. Ali eu poderia tirar as rodinhas e, enfim, pedalar sozinha, feito gente grande de verdade. Eram três ou quatro tentativas em vão e alguns medos e frustração. Na semana seguinte, tudo se repetia... Que energia a minha mãe tinha. 

Ela tirava as rodinhas e seguia sempre ao meu lado. Às vezes, um pouco atrás. Eu ia ziguezagueando e entortando. Pondo o pé e parando. Eu vacilava... e lá estava ela em um segundo. Pronta pra me segurar no mundo. Não tinha como cair. Não podia desistir. Ela sorria e me fazia recomeçar.

Ah, mãe, que falta me faz. Nesses dias inseguros. É tanta gente cortando nossa frente, jogando nossa bicicleta contra os muros... Já tirei as rodinhas faz tempo. Ando sozinha,  todo o tempo. 

Às vezes olho para trás... e vejo seu sorriso novamente. Meu porto seguro. Amor confiante. Sempre presente, me dizendo — suave, firme, eternamente:

— Vai, filha. Valente. E sem rodinhas.
Estou por perto. Segue em frente!




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quinta-feira, 1 de maio de 2025

AMOR COM FRITAS...


- Minha mãe fez batata frita! 
Desse jeito, cheio de alegria, o menino me informou o cardápio do dia. Agarrando fortemente minhas pernas e provocando risos nas pessoas que estavam na fila. Depois completou... ela me deu conchinhas também! Tirou umas duas ou três do bolso e me mostrou o seu novo tesouro.

A mãe, desconcertada, veio rapidamente ao nosso encontro...  

- Que menino tagarela. Gosta de uma plateia!

As conchinhas pegamos ontem na praia. - Vamos Nicolas, larga da minha saia! E colocou o garoto no colo, ganhando um forte abraço no pescoço e um beijo estalado no rosto.

Aquele gesto e os olhos brilhantes do menino aqueceram a tarde concreta e fria no meio da longa e demorada fila, a mistura de amor com batata frita. O prato bom do dia! 

O banco era um alvoroço. Gente falando grosso. Idosos inconformados. Atendentes mal humorados. E as portas giratórias travando a fila numa coleta rotatória de chaves e celular. Tiravam também a paciência e os nervos do lugar.

O Nícolas não estava nem aí. Ele queria era contar para todos ali, o sabor do amor que sentia. Que se misturava com arroz, feijão e batata frita. Prato feito. Perfeito. De mãe! Carinho expresso e explícito. De quem atendeu seu pedido. Como as conchinhas catadas uma a uma na praia. Que valiam bem mais que dinheiro, notebook ou celular. Sua mãe lhe deu seu tempo. Seu peito. E até as conchinhas do mar.

Seus olhos vibravam acesos no sentimento imenso que ele tinha pra contar. 

E quando eu já ia embora, ele saiu correndo me agarrando outra vez...

- Eu me esqueci! Ela também fez um ovo! 

E seus olhinhos alegres se estalaram... de novo!



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