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terça-feira, 28 de outubro de 2025

O FANTASMA DO PIANO



Eu não imaginava que a nascente do Rio Tietê ficasse na cidade de Salesópolis. Muito menos que ele era pequeno e limpo, até ir ganhando volume e sujeira, à medida que vai adentrando a grande São Paulo. 

Também não imaginava que meu irmão, médico formado, e com grande talento para cuidar não só de gente, como também de patos, marrecos e faisões, iria comprar terras no bairro de Remédios, vilarejo próximo a Salesópolis. 

E era uma aventura chegar lá. Duas ladeiras saiam da estrada de asfalto e iam dar na pracinha com uma pequena igreja e mercearias de balcões antigos. Depois, três quilômetros de terra batida, com direito a capelinhas, santos sem cabeça e mata-burros. Clima de interior. 

A casa foi erguida em poucos meses e chegou, enfim, o dia da visita da família. Logo na entrada, um pergolado com primaveras vermelhas e uma placa de boas vindas: Sítio do Zeca Pireba!  Ninguém sabia quem era Zeca Pireba. Ninguém perguntou. 

Mais à frente, a casa, sorridente, com janelas e portas pintadas de laranja e amarelo. Na cozinha, panelas de cobre penduradas nas paredes. E na sala, um velho piano, com a foto dos parentes que se foram. Ainda bem que não estavam de sobrecasaca, o que dava um aspecto carinhoso e menos soturno. 

E como se dorme cedo no sítio! Acorda-se cedo. Dorme–se cedo. E quando deu nove horas, depois da janta, todos foram para seus quartos. Adultos em camas e beliches. As crianças amontoadas em colchonetes pelo chão. E se de dia a natureza nos encanta e alegra, à noite, ela nos intimida, desentocando medos e mistérios. 

E foi perto das onze da noite que se ouviu, nitidamente, o som do piano vindo da sala vazia. Notas graves e agudas. Descompassadas. Dava para ouvir em todos os aposentos. 

Mas logo veio o silêncio e ninguém disse nada. Absolutamente nada. Na hora do café da manhã, os olhinhos das crianças se procuravam, à espera de algum comentário. Nada foi dito. E o dia seguiu com risos...

Na noite seguinte, onze em ponto, a cena se repetiu. O som do piano ecoou mais uma vez na sala vazia. Foi nessa hora que o menor da turma, inocente, perguntou... - Ué? Quem tá tocando piano? 

Os adultos e as crianças, juntos e tomados de uma coragem até então desconhecida, correram até o final do corredor e se depararam com o assustador visitante: um pequeno ratinho que se distraia pra lá e pra cá no teclado do velho piano.

O riso tomou conta da sala. Enquanto meu irmão botava o roedor pra correr. Era só um ratinho. Quem diria! Um ratinho... Voltaram, cada qual para o seu quarto, tranquilos, e foram dormir.

Enquanto, no canto da sala vazia, o fantasma do Zeca Pireba se divertia, 

mais uma vez...

               


 
*                  *                      *                                                                                                    
 
 
             
                 

                                     

A BUSCA DE UM OUTRO OLHAR...


Corpo jovem. Ágil. Andar perfeito. 

Era assim com meus vinte e poucos anos. Eu carregava mil planos. Possíveis e impossíveis sonhos. No olhar, estrelas. Na força, oceanos.

Não sou mais como antes. Ganhei marcas, ruguinhas, implantes. 
Rápido agora, só alguns instantes. O resto é sonolento. Mas olho com discernimento. Quase não me engano. Com o passar dos anos, escolhemos os melhores planos. Segredinhos do caminhar humano.

Faço marcas na areia e observo as ondas prontamente apagando. Não preciso deixar nada. Nem sequer pegadas. Ando calma. Quase flutuando. 

Eu, que tinha olhos de lince. Mirava o sucesso, fama. Corria trilhas e milhas para nem sempre alcançar. Hoje, repouso meus olhos no mar.

Até o amor se aquietou. Antes, suor e vertigem. Paixões, que eu julgava indestrutíveis. Agora é paz e calmaria. Valsa suave. Fina melodia. Nada mais sufoca. Na minha aorta, bate o amor verdadeiro que nada pede em troca. Às vezes, a válvula cansada é que entorta. Mas o amor está lá, por inteiro. Sem refluxos, nem reviravoltas. O vagalhão da paz conquistada me conforta. 

Não sou mais como antes. Pele macia. Joelhos sem dor. Articulações perfeitas. Esquece! Tudo está meio usado, mas muito decente. 
Até a boca afiada que usava palavras erradas em momentos de fúria, deu lugar ao silêncio, à ternura. 
Das ações prematuras, patéticas juras e inúteis e fúteis investidas, vieram absurdas renascidas. Encontro da razão com o coração. Alma, na sua melhor versão.

Não, não sou mais como antes. 
Não sou mais do jeito que um dia você me viu. Busco um outro olhar. Que não repare tanto nas fortes linhas, marcas e ruguinhas. Nem nos visíveis defeitos. 

Quando me olhar agora, por favor... leia-me por dentro!


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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

PÉ SUJO



Era tão bom! Durante o dia, corria e brincava. Subia e descia. As ladeiras e as escadas, na frente da casa. Depois, comia correndo e de novo pra rua voltava. Rodava, pedalava, empinava...
Ás vezes, brigava. Chutava e chorava. Descabelava e sorria. E finalmente, cansava. No começo da noite, quase desmaiando, em qualquer lugar a gente desabava. A mãe, com pena, nem banho dava. E a gente, com os pés sujos, dormia um sono só. Sono profundo. Com pés imundos.

Quem não dormiu com pé sujo uma vez na vida, não sabe o que é bom. Pé de infância cascuda. Pré-digital. De jogos com bola, amarelinha, mãe da rua. Rolimã, bola de gude ou bafo na calçada. E a bicicleta entre os carros, num ziguezague perigoso e acelerado. Um risco danado.

Na chuva então, chapinhando de poça em poça. Nem parecia uma moça! E o pé cada vez mais sujo... - Menina, moleca! Vem se lavar! E a gente por fim obedecia. Mas era um pé de gostosura. Aventura. Inocência. Poeira pura.

Hoje as crianças tem pés com rodinhas. Tênis com luzinhas. E a sola do pé bem lisinha. De quem não pisa no chão, no quintal, na areia... e nem na grama do vizinho! 
Eta infância sem graça, de pé de anjinho...                                                                                                                     
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 Crônica inspirada na música de Dorival Caymi... Quando durmo...
                                                                                 youtu.be/zs1J7CLG9ss   




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terça-feira, 30 de setembro de 2025

A LÁGRIMA NA JANELA...


Era gelada a madrugada. O calor da nossa respiração embaçava o vidro da janela do quarto. Não se via nada do outro lado. Só o fundo escuro, o vapor e um leve enredo de amor. Lá fora, tudo silenciava.

Meus olhos estalavam vivos e sem sono, em feliz abandono. De repente, um clarão em minha testa! A lua, de penetra, entrou pela fresta da outra janela. Alva. Branca. Iluminando feito um sol no quintal. Nunca vi igual. Ali, ela achou seu lugar e decidiu ficar.

Acordada à horas na demorada madrugada fiquei olhando a lua prateada que não queria ir embora. Já tinha passado da hora. Mas como dormir agora?                

De certo, a lua queria encontrar o sol que do outro lado já se aprontava. O céu clareava. A noite ia virando dia... E enfim, o astro rei apareceu. Ficaram os dois no céu ao mesmo tempo. Um em cada canto! Eu os olhava com olhar de espanto. Talvez fossem amigos distantes. Quem sabe, tenham sido amantes. A lua só queria dar uma espiadinha. Um oi de luz já bastaria.

Não teve jeito. O sol subiu com tudo que tinha direito, abriu o novo dia e a lua apaixonada e pálida foi desaparecendo. Fiquei acordada até que sumisse de vez, deixando a sombra enevoada de quem esteve ali, por muito tempo parada. 

Talvez ela tente amanhã encontrar o sol novamente na fria madrugada. Lunática! Não irá conseguir jamais, salvo uma hecatombe final. Melhor não pensar nisso, nesses dias de novo normal. A cena linda e triste apertou meu coração. 

Olhei o vidro embaçado da outra janela, me deparando com a lágrima condensada e gélida que rolou. 

A janela, emotiva, também chorou.


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quinta-feira, 18 de setembro de 2025

PASSARINHOU, FLORESCEU, FLORIU...



Abelhinhas fartas e meladas entraram valsando pela janela aberta como se tivessem  cumprido bem seu papel. E pelas asas de alegria, devem ter produzido um ou dois baldes de mel.

Chegaram as borboletas azuis, amarelas e pretas. Sabiam de alguma novidade. Largaram, amarrotadas, seus escuros casulos e pela primeira vez, experimentaram voos mambembes e inseguros à luz da liberdade.  
      

Os curiós, curiosos, foram os primeiros a saber. Não deram um pio. Um deles fingiu que não me viu. Comecei a desconfiar de alguma notícia mais quente. Os bem-te-vis bem-te-viram antes de todos que as paisagens estavam diferentes e entoaram notas de terças numa eloquente harmonia sertaneja.

 

A grama estava mais verde. Os sapos pulavam. Os insetos voavam. Nos cantos, bichinhos doidos se embolavam e sem pudor se amavam. Que raios acontecia ao redor? Quem espalhava esse tanto de amor... e sacudia poléns afrodisíacos nas florações?

 

O bem me quer não bem me quis estragar a surpresa. Melhor perguntar à mãe natureza. Fui até o pé de milho. Sussurrei ao pé do seu verde-amarelo ouvido: quem é que arrancou o terno cinza e vestiu todo mundo com traje florido? 


O milho pipocou e não falou. O dente de leão rugiu, mas não contou. Nem o vento quente que bateu, me soprou. Alguém pode dizer o que foi que rolou? E tudo desabrochou. Explodiu de amor?


E debaixo da janela, a Maria sem vergonha, tagarela não se segurou... ainda não sabe?


A primavera, que chegou!



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segunda-feira, 15 de setembro de 2025

PONTO NA IMENSIDÃO...


A imensidão me encanta. E me assusta. 
O céu infinito e o oceano profundo dão a justa dimensão do meu tamanho no mundo. Um simples ponto. Micro. Minúsculo. E nesse azul encontro, meu ego fica meio tonto e vai-se embora. Resta apenas o aqui, agora. Perco poderes. Cargo. Dinheiro. Glória. E o pouco da própria história.       
                                                   
Somos partícula de um todo. Poderoso, gigante e majestoso. Eu sinto a imensidão por dentro. E me comovo...  
                                     
Deve ser assim olhar de perto as estrelas. No cenário mágico e incompreensível do infinito. Entre a luz dos astros, o espaço e um buraco enigmático. Buraco negro que guarda segredos. Fotografado. Jamais desvendado. Que me atrai. E mete medo!              
Dizem que os astronautas, quando voltam, ficam loucos. Ou passam a louvar a Deus. Até mesmo os ateus. Não dá pra ficar são diante da imensidão.   
               
Foi no grande cânion da Foz do Iguaçu, meu contato mais próximo com a imensidade. As águas em queda livre. 

Volumáximo. Volumenso. Volumístico! Inventei palavras para descrever a sensação daquelas cascatas colossais. Naturais. Jorrando com força máxima. Energizando as rochas e o chão. No dia ensolarado de luz e reflexão.  

A vontade era entrar sob as fortes cascatas deixando cair sobre minhas costas o jorro das toneladas. Águas geladas e correntes. Lavando e levando tudo. Do corpo e da mente. Dores. Dissabores. Pensamentos antigos. Hábitos nocivos. Coisinhas banais que não me servem mais.                

Sobraria então, o corpo são. E uma alma novinha, mais pura, pra recomeçar. 
A imensidão me encanta. E me assusta. Imensidão das águas. Do céu. Do mar... 

Que me põe, sempre, no meu justo lugar.    


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terça-feira, 9 de setembro de 2025

A CASINHA NA ÁRVORE...


Robinson Crusoé. Mogli. Tarzan... Alguns heróis das aventuras na selva ainda moram no meu imaginário. E eles saíram sem pedir licença. Das fábulas e do meu pensamento. Enquanto eu subia lentamente, degrau por degrau, a escada da pequena casinha, construída em cima de uma antiga árvore da fazenda. Era como se eu visse a minha história de vida invertida. Eu ia subindo e me tornando cada vez mais jovem... 

No primeiro degrau, desapareceram as dores nos joelhos. No segundo, a doença incurável da mãe que se foi... No terceiro, o trabalho chato e rotineiro sumia feito nevoeiro. No quarto, o marido cansado virava o antigo namorado. Do quinto em diante eu já era estudante. Adolescente. Um pingo de gente. E pronto! Criança outra vez. Com uns cinco anos. Ou seis... 

Entrei na casinha com a alma em sobressalto. Enormes troncos rasgavam o chão e furavam o teto não muito alto. Uma beliche. Um lampião por perto para quando escurecer. E um alpendre pra ver o sol nascer... e morrer. Fiquei lá por algumas horas, comendo goiabas verdes, araçás e amoras. Como se o tempo parasse. Só às vezes, o grito do Tarzan ecoava na mente, passando num cipó, muito rapidamente... 

E ao descer a escada, degrau por degrau, eu já não era igual. Uns bons anos mais jovem, talvez. Tanto bem que me fez! 
Por isso, de vez em quando, se me aborreço ou o mundo fica sério demais, subo na casinha da árvore para rever os velhos sonhos e sorrir uma vez mais. Mesmo que não exista mais a casinha. Nem a árvore no jardim... 

Eu agora me recolho. Em algum lugar criança, dentro de mim... 




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