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quarta-feira, 26 de março de 2025

O BALANÇO DA ALMA



Às sete acordo. Tomo banho. E quero melhorar o mundo.

O dia é uma folha em branco. Meu otimismo é a roupa recém-lavada que visto na manhã onde tudo parece possível.

Às oito caminho. Os compromissos e as memórias se entrelaçam. Projetos se desenham no horizonte. Os ensaios de ontem ganham forma na minha mente arejada. O sucesso caminha ao meu lado, descalço e sorridente. Sou o otimismo que corre na areia. A alma passeia.

Às dez sento para escrever. E as palavras se dispersam em folhas que caem e a clareza se esconde atrás de montanhas. A inspiração hesita. O texto gravita, solto, sem contorno. Não insisto. Há dias em que a alma se veste de outono.

Às quatorze almoço. O corpo assimila os nutrientes, a mente absorve as horas engolidas. Tudo se mistura no menu – o que fui, o que serei, o que ainda não entendi e não sei.

Há renovação no mastigar e as frutas da estação me lembram que a vida segue em ciclos, em fomes, alternâncias de humores. Às vezes, tensão. Às vezes, flores. Oscilações da alma.

Às quinze toca o celular. Retomo o fôlego, ajeito o corpo. A vida pede sequência, ainda que a alma preferisse uma “sesta”.

Às dezessete, desempenho total. Escrevo, resolvo, organizo o carnaval. Como se a tarde entendesse sua missão de me reconciliar com o dia impreciso e lento. Há uma pressa, uma necessidade de fechamento.

Aproveito esse instante, sei que sumirá ao cair da noite.

Às vinte, respiro fundo, mas o mundo me invade.
A tevê cospe sua tragédia diária,
e a esperança, que de manhã eu vestia, agora tem manchas de dúvida e pessimismo. Minha alma, com "tdah", oscila outra vez.

Às vinte e três, busco novo equilíbrio, vejo uma série leve ou parto para um livro.

E já é meia noite. Queria ter dormido antes. Queria ter regado as flores.

Queria ter cantado no microfone. Vou deitar apressada.

Amanhã acordo cedo. Tenho que melhorar o mundo.

 

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quinta-feira, 20 de março de 2025

FOLHAS DE OUTONO



Eu caminhava nas tardes de outono pela estrada forrada de folhas secas, marrons e douradas, caídas das copas das árvores. Foi o tempo ou foi o vento? Eu perguntava e eu mesma respondia, os dois! O outono é assim. Tempo de ventos e renovação. Algo sempre morre. O novo toma lugar.

O caminho de terra sombreado pelos galhos acumulava várias camadas de folhas, produzindo um crepitar seco e quebradiço ao pisar. Muitas vezes eu ia com os pés descalços só para tatear. Apreciava o som de cada passo. E o piar de alguns pássaros completando a trilha natural. 

As aves entocadas também trocavam suas plumagens. De quem é essa pena? Sabiá laranjeira, eu dizia sem convicção. Pode ser que sim, ou que não. O outono é assim...

Nos dias chuvosos a estrada ficava úmida. Também tinha beleza. Era o pisar do macerar. Macieza umectante. Alguns pássaros, ainda que distantes acompanhavam na esperança de algum bichinho na terra, saltitante. Sempre havia um inseto descuidado, coitado. 

Eu ia com minha mãe procurar pinhas para enfeitar o Natal. Mas já? É que as pinhas tem de descansar. Secar bem, para abrir os gomos por inteiro, feito flores de madeira, prontas para enfeitar a ceia. E elas estavam lá, espalhadas pela estrada. Algumas pequenas e quebradas. Outras perfeitas. Colocávamos as melhores no chapéu de palha. E o sol tímido não esquentava nossas cabeças. O outono é assim...

Levávamos, eu e ela, um cajado. Galho duro que eu procurava feito detetive no meio do mato. Logo achava um pequeno jogado e ajudava minha mãe a encontrar um cajado maior e mais largo. Nosso andar era calmo e cheio de perguntas sem respostas. A cerquinha caiu! Foi o tempo ou foi o vento? Os dois. O outono é assim...

Hoje, os passeios e o chão de folhas secas ficaram na lembrança dos outonos da minha infância. Em algum sítio da memória. Tenho pisado em terrenos mais urbanos. Ouvindo sons de carros e lamentos humanos. As caminhadas na areia ainda resistem, mas as pisadas somem rapidamente com as ondas do mar.

As folhas, o cajado e minha mãe ao lado, continuam eternos. A saudade bateu hoje em mim. 

Foi o tempo ou foi o vento? O outono é assim...      


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quarta-feira, 12 de março de 2025

SAUDADE DE VOCÊS...


O apito longo e doído do velho carrinho do vendedor de paçoca, me fez recordar coisas que há tempos não vejo mais...

Foi surpresa sem igual. Quando vim morar na Olavo Bilac, poética e estreita rua do litoral. Tão diferente das grandes avenidas que morei na Capital... Lá veio ele, com seu apito longo e conhecido da garotada. O carrinho com chaminé e fumaça lembrava a frente de uma locomotiva. Ainda na ativa, ele vendia amendoim e paçoca quentinha. De rolha ou farelinha. Ambas macias.

Depois da paçoca e do amendoim, passavam durante a semana, vários outros ambulantes. Engraçados sujeitos! Com seus gritos e frases de efeito. - Olha o amolador! De facas, tesouras ou outro laminado que for. Passava também o consertador de panelas de pressão! Cheio de válvulas, correias de borracha e panelas de antigas marcas. Panex, Panelux, Fulgor! Cheguei a correr atrás do vendedor. Minha válvula pifou! Levei outra, seminova. À toda prova. Palavra do vendedor. 

Saudades também dos ambulantes da praia... Onde anda o vendedor de biju? Olha o Beeeeju! Batendo forte na sua matraca de madeira e ferro, marca registrada do biscoito seco e quebradiço, misto de polvilho e farinha de trigo. Ao contrário do vendedor de algodão doce, que usa uma buzina para anunciar a sua chegada! Quanto tempo não vejo mais nada. Cadê os vendedores de cocada? 

São tantas coisas lindas que não tenho visto mais... Lembro das noites iluminadas pelos insetos que acendiam e apagavam na madrugada. Pra mim, eram seres encantados! Dezenas deles, espalhados. Nas noites da cidade. Nas praças e descampados. Aonde andam os pirilampos? Cadê os vagalumes iluminados? 

Receio que essas coisas belas que eu via quando criança... Os antigos ambulantes, os vagalumes e até as abelhas em suas doces andanças... 
Restem um dia, apenas e somente, na nossa lembrança.



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sábado, 1 de março de 2025

OITO CACHOS... NADA MAIS!

Ela subia num degrauzinho de madeira para ficar mais alta e ajudar por alguns minutos no caixa. 

A venda da Dona Emília era daquelas antigas, com prateleiras de madeira escura, grandes sacos de juta com bordas enroladas, cheios de arroz, feijão e milho em grãos. Latões de óleo. E uma vitrina de doces coloridos que juntava crianças feito formiguinhas no açucareiro.

Na lousa preta, na porta principal da venda, escrito com giz, o chamariz. "Aqui tem. O melhor sorvete de ameixa do Belém!" Devia ser. Aos sábados fazia fila na venda da Dona Emília.

A casa da família era no andar de cima e perto do meio dia, minha vó subia para aprontar o almoço, entornar as ameixas no leite cremoso e fazer mais um latão do sorvete famoso. 

O avô, que tinha levantando às três da manhã para comprar as mercadorias, acordava a contragosto e descia para tomar seu posto, até minha mãe, pequenina chegar e se oferecer para ajudar.

As meninas do bairro só pensavam nos vestidos e nos cabelos de domingo. Minha mãe continuava no caixa, lendo um livro ou um gibi. Foi assim até a adolescência. As meninas liam revistas. Minha mãe, Machado de Assis.

A revista Cruzeiro com as estrelas de Hollywood definia a roupa e os cabelos da moda. As costureiras do bairro trabalhavam para reproduzir igualzinho, encontrando os tecidos perfeitos.

Minha mãe escolhia um vestido antigo que não servia mais para a irmã mais velha e vestia. Dona Emília ajustava no corpo com a ajuda da velha máquina de costura. Mas o cabelo era a parte mais dura. Não tinha paciência, nem desenvoltura.

Algumas garotas contavam seus cento e vinte cachinhos. Sessenta pra cada lado. Ou nem saiam para o desfile de sábado. Ser "Shirley Temple" ( foto) dava um trabalho danado. A manhã inteira com bigudins pendurados, pensando nos cachos e nos futuros namorados.

Poucas horas antes do "footing", minha mãe largava os livros e corria para fazer seus oito cachos. Quatro pra cada lado. Nada mais. A tarefa a aborrecia demais.

Pouco antes de sair ela soltava as madeixas. Os cachos lambidos escorriam da sua cabeça. Ela sorria. Não ligava. Não combinava com as duras cabeças empoladas.

Meu pai, um dos rapazes cobiçados do bairro do Belém, disse certa vez o que viu de diferente na minha mãe, no meio de tantas divas hollywoodianas com seus cabelos de spray.

Sua mãe tinha a justa medida. No vestido simples, o corpo bonito transparecia. Sua boca alegre sorria. 

E o cabelo... ah, o cabelo, natural e leve. O vento desenrolava e ele bailava... e se mexia! O cabelo também sorria.


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