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segunda-feira, 29 de agosto de 2022

DEITADINHA...

                                                             
Eu procurava o único pedacinho de sol da manhã e deitava no azulejo quentinho do meu quintal. A casa era fria nos dias de inverno e a luz artificial não aquecia. Eu recarregava a minha bateria naquele cantinho nos ensolarados dias.

O colégio tinha um pátio grande e uma palmeira imponente no meio. Eu corria para ela no recreio. Lanche na mão e a alegria de sentar ao sol no quadrado de terra descoberto olhando o céu aberto. O sol a pino. Eu sem teto.

Os anos adultos e duros vieram. O tom pálido diário do trabalho. Dias de escritório. Os pais mais velhos recolhidos em seus apartamentos de escuras cortinas. Junto deles, minha rotina cuidadora de filha. Nas pausas eu corria até a praia e deitava na areia. Esteira em frente ao mar para ver o por do sol e minha alma úmida secar. Alguns minutos bastavam para o amor de novo me ensolarar.

Os colibris saem de manhã com um mínimo de energia. Precisam achar rapidamente comida para ganhar simplesmente a vida. Batem asas num movimento absurdo, oitenta vezes por segundo. De flor em flor vertendo a energia para sobreviver a cada dia. Vivem no limite.

Um mini-colibri minúsculo é o único que descansa profundo. Tão pequenino, ele se deita numa folha e hiberna por poucos segundos. Depois volta ao mundo.

Olhei ele na foto deitadinho. E me vi na folha, num dia frio...  naquele meu quintal quentinho.       

 

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foto: Revista Pazes/Raul Simgh

terça-feira, 23 de agosto de 2022

MEU QUARTO OITENTÃO...


Demorei um tempão na confecção. Cada foto tinha um porquê. Um coração na revista. Um anúncio de tintas. Um ator de tevê. Os posters maiores em destaque. Fotos de cantores pops em coloridos almanaques. Capas de LPs.

A parede da casa, com muitas ressalvas, era a mãe que doava para a obra artística com ares amadores e quase sempre inacabada. Geralmente num quartinho escondido. Às vezes, a parede do próprio quarto, para privilegiados.

O melhor amigo ou amiga vinha ajudar nos recortes. Revistas da moda. Contigo, Carícia, Pop, Placar, Quatro rodas... Valia adesivo, selo, receitas, envelopes. Tamanhos diferentes, para não deixar careta a composição paredesca anos oitenta. Toda colorida, com letras distorcidas. Figuras do rock, cabelos enormes, blazers com ombreiras. Excessiva e psicodélica pintura. Muito de inocência querendo ser loucura. 

A cola branca diluída em água fria fazia a pasmaçada. O pincel era qualquer um de tinta que a gente encontrava. Cada figura colada, um novo aleatório desenho se formando. Como se revelando o caledoscópio das nossas almas.

Cores e nomes em sobreposição. Idolos emergindo no papel da parede que embalava a geração. Coração analógico e estudantil. Mostra e diversidade multicor daquele Brasil.

A parede dos anos oitenta! Retalhos de momentos adolescentes. Mistura de rocknroll, mpb, meias coloridas e golas diferentes.

Era a nossa Internet... na parede!  


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segunda-feira, 8 de agosto de 2022

NO ESPELHO É MAIS FÁCIL...


Ela ensaiou horas diante do espelho. Decorou frases de efeito tiradas de um livro de autoajuda perfeito. Buscou as palavras mais duras. Um misto de amor e amargura. Uma conversa sem freios e rodeios. Flechas certeiras no coração do ex companheiro.  

Planejou um choro discreto.  Muito equilíbrio e um resto de afeto. Discurso perfeito para um encontro casual. No saguão do restaurante habitual ou no caminho do toillete. Imaginou-se de vestido leve, salto alto e olhar sexy... Ele com ar cansado, saindo do trabalho e expressão de arrependimento.

Finalmente diria o que tinha guardado por anos. A dor da traição. A solidão, o desabar dos seus sonhos. O quanto foi cruel seu parceiro, desprezível e desumano. Nem os cinco dias, dois meses e seis anos, tinham conseguido apagar... 

Não foi assim que se deu. Naquele sábado tumultuado ela entrou no mercado do Nereu. Bermuda velha, chinelo velho e cabelo que ela mesma prendeu. Ele estacionou em frente com sua Mercedes reluzente. De terno elegante, ar de contente e um par de óculos escuros. Os dois se cruzavam, agora mais maduros... 

- Beatriz? 
- Joa...quim!
- Parece nervosa! 
- Bobagem... Estou bem. Bem feliz. 
- Ótimo, estou com pressa! E partiu dando um beijo frio em sua testa... 

Beatriz engoliu todas as palavras pensadas, por mais seis anos, dois meses e incontáveis dias. 
A vida é sem ensaio, Bia. É à revelia...

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quarta-feira, 3 de agosto de 2022

DE BEM, NOVAMENTE!


Ele disse que sabe cantar o Hino nacional de ponta a ponta! Sem errar nenhum pedaço. Sabe o que eu acho? Ele está me enganando...

E lá se foi o Sílvio carregando o peso dos seus oitenta anos. Passos lentos e ritmados, pela calçada da vizinhança, até encontrar uma papelaria. Queria achar aqueles cadernos antigos que tinham o hino nacional estampado na parte de trás. Não existiam mais!

Tivemos que imprimir o hino, em letras garrafais, só pra ele conferir... E não é que o Flávio sabe mesmo? Cantou direitinho. Do ouviram do Ipiranga até o finalzinho... Pátria amada, Brasil! Cantarolou e sorriu...

Era uma amizade tardia. Feita na vizinhança. Por quem sabe que é preciso um amigo por perto. Mesmo que esse amigo não esteja sempre certo. A amizade dos sozinhos. Dos velhos e vizinhos. Que contam da vida e seus amores. Dividem as dores, bulas, remédios e dissabores...

Quando quebrava o chuveiro, o Sílvio chamava o Flávio pra consertar. - Não precisa pagar o conserto. Mas o café, eu aceito! Era sempre na mesma padaria. Quase todo dia.
- Desse jeito vai sair caro. O Silvio se divertia... 

De noite ou de dia viviam se cruzando na vizinhança. Sem muito combinar. Sabiam os horários que estariam por lá. Prontos para prosear. Riam e brincavam. Às vezes brigavam. Eram dias sem se falar...

Encontrei o Silvio chateado... Briguei com o Flávio. Ele me ofendeu. O Flavio então apareceu, triste e cabisbaixo. Olhou para o amigo Silvio e reconheceu... Eu queria pedir desculpas. Mas você é mais teimoso que eu!

Peguei o dedinho mindinho dos dois velhinhos e promovi a reconciliação. Que tal um café na padaria? - Dessa vez eu pago, disse o Flávio, sorridente.  - Até que enfim! Silvio alegremente "alegreceu"... 

E as duas velhas crianças seguiram em frente. Passos lentos... 
Amigos, novamente!


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Foto:Getty Images/iStockphoto
Informações extraídas do IPTC Photo Metadata





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