o perfume que roubam de ti...
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018
POEMA: ÚLTIMA CARTA DE AMOR
o perfume que roubam de ti...
SEM EIRA, NEM BEIRA..

Visitei o casario histórico colonial de Cananéia e senti como se desenterrasse algumas verdades soterradas no fundo do Brasil.
Em cada parede grossa, feita de pedra, conchas e sambaquis, pulsava a energia dos antigos moradores. Gemidos de escravos pareciam ecoar nas casas — muitas com masmorras no porão, que agora abrigam restaurantes servindo ótimos peixes e a famosa ostra da região. Confesso que senti certa angústia em comer nos ambientes.
A visita à bela cidade do litoral sul de São Paulo, chamada de “Cidade Ilustre do Brasil” e muito parecida com Paraty, foi desbravadora.
Cananéia foi o primeiro povoado brasileiro e, segundo os historiadores, o temido degredado Cosme Fernandes, o "Bacharel de Cananéia", já estava por aquelas bandas antes mesmo de Cabral.
Anos mais tarde, iniciou seu comércio em São Vicente, a primeira vila do Brasil, de onde foi expulso por seus atos cruéis e desleais. Homem mau esse Bacharel. Cananéia, jamais!
Lá, o ar é simples e bom. A maioria das casinhas coloniais está conservada, e é possível ver nos telhados a divisão social daqueles tempos.
Os ricos construíam o telhado com três camadas: eira, beira e tribeira! Os mais pobres — nem eira, nem beira! Daí a expressão que retrata alguém sem posses, sem ter onde cair morto, cuja casa só tem um telhado. Sem eira, nem beira! A maioria é gente simples mesmo, como os pescadores do local.
Um simpático morador nos levou até o Sítio do Cardoso. Lá, a gente chega e escolhe o peixe que vai comer no almoço, feito ali, na hora, no fogo.
Escolhemos paraty e peixe-galo e seguimos em direção à trilha de bromélias e araçás que levava até o mar.
A praia rústica, com armadilha indígena feita de gravetos para pegar peixes, e os golfinhos davam a moldura da natureza preservada. Uma linda tartaruga marinha veio nos cumprimentar e dar boas-vindas!
Na volta, o peixe já frito, a cachaça de cataia e um pescador de camarões contava causos do mar.
Tudo simples. Como a gente bem poderia ser.
Sem besteira! Nem eira. Nem beira.
quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018
A VITROLA E O PALHAÇO TRISTE...
Cada móvel da casa da minha mãe escondia uma lembrança. E um tanto de poeira...
Em seus noventa
e um anos, pelos menos nos últimos cinquenta, ela conservou os mesmos móveis.
Fortes e clássicos. Não por simples apego, mas porque cada um trazia em si uma
história. Além da frágil sensação de território seguro.
Na sala, uma rádio-vitrola. Móvel grande. Todo em jacarandá. Valvulado! Que ainda funciona e nos remete ao primeiro compacto que ganhamos com selo vermelho e a música Vênus do Shocking Blue. Mais tarde, um compacto dos Beatles com a maçã cortada ao meio e a música Revolution. Ouvíamos bem alto, os quatro cabeludos que queriam mudar o mundo.
Pouco depois, minha mãe ganhou o LP “Italianíssimo” que rodava de manhã até de noite e reforçava nosso sotaque italiano, próprio de uma família que nasceu na Moóca e cresceu no Brás, há muito tempo atrás. Em cima da vitrola, uma estante com livros dos grandes filósofos. Lembrando que depois de criar os filhos, Dona Olga criou asas e decidiu estudar. Entrou na Usp em “filosofia pura” em oitavo lugar...
Os livros continuaram na estante e são muitos. Agora, azuis esbranquiçados. Todos gastos e com capa manuseada. Além de anotações e sublinhados, resultado de quem leu e releu inúmeras vezes cada página. Muito embora, com o tempo, ela não tivesse mais sequer noção de quem foi Nietzche ou Platão.
Tinha também as lindas mesinhas na sala de estar, com as laterais de pés fininhos e delicados, retrato dos anos dourados. E finalmente, uma poltrona berger, com um discreto corte no tecido fino, escondido por uma almofada de veludo vinho.
Mas o que mais me chamava a atenção e ainda me comove, além de todos os móveis, era o quadro do palhaço triste em cima do piano, no quarto da televisão. Triste, sim. O palhacinho pintado. De gola larga. Um quase sorriso na boca e uma melancolia nos olhos emoldurados.
Lembrava, para mim, o doce-amargo da vida. Paralelo de minha mãe e seus noventa e um anos. Lado a lado com a amargura de não mais poder caminhar sozinha nas ruas. Mas que pintava o rosto todos os dias para nos dar alegria... e mostrar que seguir adiante, muitas vezes, é uma arte!
Dona Olga, sempre nos fará sorrir...