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sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

VAI UM INGÁ, AÍ?


Tá cheio de ingá. E ninguém pra catá!
No final do verão, os canais de Santos ficam forrados de ingás espalhados pelo chão. Caídos e macerados. Ninguém apanha com a mão. Nem as crianças recolhem do chão.
Já experimentei muitas frutas de sabores exóticos e diferentes. O azedo tamarindo, a leve lichia, o cajá, a pitaya com pintinhas. Nos supermercados gourmets, comprei mexerica em gomos e bacias de kinkan.
Encontro sempre uma fruta nova para experimentar. Algumas moles por dentro e de casca enrugada e escura. Em outras, encontro mais beleza que doçura. Experimento sem frescura. Como até o fim. Feito o ingá, que eu sempre abaixo pra catar! Fruta natural. Caída do pé. No meio do canal. Longe de ser uma delícia, tem um sabor especial. Sabor simples de natureza.
Em janeiro os ingazeiros sorriem  carregados. Se fossem árvores de pitangas ou amoras, não estariam assim livres no canal agora. Seus galhos teriam entortado com gente subindo pelos lados. E se fossem frutos ainda mais cobiçados? Ameixas ou cerejas lindas? Ia dar briga. 
Deixemos assim. O ingazeiro quieto e feliz. Não é famoso. Nem suculento. É como Deus quis. Como gente genuína e singela. Pra que extrema beleza? Nobreza? Jóias de princesa?
Viva a leveza de sermos como os ingás. Simples e felizes. Junto dos amigos. Produzindo frutos. Criando raízes. Sem muita grife. 
E sem muita cobiça!


                            Canal 1 de Santos  



                                     

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

A ÚLTIMA RESSACA...

                                    

Ondas grandes bateram nas muretas da praia explodindo em nuvens brancas de água e espuma na noite escura. O mar em fúria. Mistura de medo e contemplação. O mundo das águas revirado A dor dos estragos... 

A última ressaca da Ponta da Praia foi violenta. Invadiu a avenida. Inundou as garagens, arrastando carros e quebrando amarras, muros e previsões. Trouxe medo, rejeitos, destruições. Arrebentou as sentinelas. Medindo forças com a Terra.

Olhei o pequeno barco de nome “Gênesis” que apareceu do nada. Saiu do cais e parou no caos. Sem cordas e sem rumo. Jogado de um lado para o outro encontrou a mureta até destroçar. Pedaços de tábuas ao lado. Gravetos espalhados no mar. A imagem da ressaca amanhecida ficou gravada nas minhas retinas. Fotografei a nau ferida.

Certos finais de ciclo em nossas vidas também nos deixam à deriva. Ondas de acontecimentos que vem do nada, arrastando, quase afogando e nos jogando contra os muros duros. Soltamos as rédeas em meio ao turbilhão. Sem bússola nas mãos. Apenas o pobre e desorientado coração.

E vem o cantar... durante o nevoeiro, o velho marinheiro leva o barco devagar. Mas na fúria dos mares, não há muito tempo para pensar. O barquinho seguiu sem comando. Corpo e alma sacolejando. Gênesis em agonia, no apocalipse de cada dia. Sem saber aonde parar...

No final, a bonança. No horizonte da nova manhã surge um sol tímido e uma nesga de esperança.
Que ressaca foi essa, meu Deus? Meu corpo ainda balança...

            
*                 *                 *                   *        
Foto : Barco Genesis /Ponta da Praia                                                     

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

A LENDA DA PORTEIRA...

                               
Eu pedia para ele repetir sempre a mesma história. Com os mesmos detalhes. Meu pai, cansado e com a impaciência “napoletana”, repetia as lendas do antigo bairro do Brás. Eu sentia em cada lugar saudosamente descrito, um pedacinho da Itália no coração de São Paulo. No coração do meu pai... 

Eu me encantava com a chegada dos imigrantes italianos em navios. A maioria, trabalhadores do campo. Que falavam cantando e gesticulando com as mãos. Eu agora os via sentados, nas cadeiras nas calçadas, nos finais de tarde, a “parlare”. Eles vinham do Porto de Santos, passando pela Estação do Brás, e Jundiaí era o destino. Lá havia produção de uvas e de vinho. 

Os que ficavam no Brás, em geral, abriam um comércio vizinho. Pizzarias. Cantinas. E empórios com salames e provolones pendurados. Vinhos engarrafados e toalhas xadrezes, verdes e vermelhas, sobre as mesas... Tudo era um filme na minha cabeça e eu esperava ansiosa a história do vendedor de leite de cabras. A porteira do Brás era um sinal que a história ia passar... 

Aberta manualmente, depois que o trem passava, a porteira causava aglomeração. Carros, carroças, pessoas e confusão. Nas ruas mais estreitas, como a do Hipódromo, havia só uma cancela. Com acionamento elétrico. O trem passava e dentro da cabina, um funcionário acionava. Foi numa dessas cancelas que o berro de mistério aconteceu...

O velho conhecido senhor judeu vendia o leite de cabras. Todas as tardes, ele batia na porta das vendas e das casas. Ordenhava ali, na hora, o leite quente e fresquinho. Ele segurava uma corda que, feito um leque, tinha uma cabra em cada ponta. Eram três cabritinhas. E era comum estacionar os animais em alguma local, para tomar água e dar descanso às bichinhas. 

Um dia, por descuido, ele amarrou as cabritas na cancela. O trem passou e a cancela subiu. O que se viu foi gente gritando aflita: - Chama o moço! - Chama o moço! As cabritas estão subindo pelo pescoço! 

Duas cabritas saíram ilesas e uma ficou levemente ferida. Talvez meu pai tenha mentido. Alguma deve ter morrido. Mas ele sabia que eu não queria esse fim. 

Durante muito tempo, pensei que fosse uma lenda ou uma história inventada por um pai querendo fazer graça. Mas encontrei relatos do fato. Se aconteceu desse jeito eu não sei, sabe como são os italianos... vão “parlando, parlando, parlando ”, até cruzarem o oceano...


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Foto e outras informações

Lenda citada na crônica, aparece no documentário "Brás, sotaques e desmemórias", 
de Lourenço Diaféria
https://youtu.be/XV-rS1q7Rh4



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quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

PEDACINHOS DE CHÃO...



Restaram em mim... caquinhos da infância.                                  Alguns pisos ficaram pavimentados na minha memória. Os chãos mais novos e acarpetados foram carcomidos e sumiram com o tempo, mas o chão de cacos vermelhos, esse continua inesquecível. Lembro dele nos quintais e áreas de serviço. Ainda encontro nas casas dos bairros paulistanos mais antigos. Combina com casinhas de cachorro e vasos com renda portuguesa espalhados pelos cantos. Eu brincava tanto.

Outros cacos de azulejos, brancos, beges e azulados também eram muito utilizados. Pontudos, irregulares e bem misturados. Mais baratos que as peças inteiras e melhores que cimento para se ter no chão. Mas ralavam nossa pele ao menor escorregão. Nas casas de praia eu recordo de chãos gelados de pedra ardósia. Verde escura ou cinza chumbo. Enceradas com uma cera brilhante e no centro, um tapete artesanal de barbante. O chão tinha frescor matinal. Coisas de praia, sandália, mar e sal. Além de ardósia ser nome bonito. Parece flor. Um doce com creme ou outro recheio de leve sabor.

Os chãos foram mudando com o passar do tempo. Cada um, com seu momento. Nós, os bichinhos de apartamento, nos acostumamos com os carpetes peludos. Lembro do meu quarto cor de ouro e do outro,  rosa melancia. Eram aconchegantes. Para rolar noite e dia. Produziam espirros e alergias.

Vieram os carpetes de madeira, o toc-toc dos saltinhos barulhentos a esfuracar o chão.  Hoje, os azulejos modernos imitam madeira, pedra, até os antigos ladrilhos portugueses. Reproduzidos perfeitamente. Sem memórias. Só presente. N
ada mais teve a poesia dos pisos de antigamente.

Quando comprei a primeira casinha, pequena e com acabamento antigo, o piso me virou a cabeça. O antigo dono colocou pastilhas de parede brancas e verdes por todo o chão. Eram pequenas e quadradinhas, usadas geralmente na frente dos prédios. Eu me sentia andando pelas paredes. Feito mulher aranha, torta e sem direção.
Deu três meses e troquei o piso. Meti um porcelanato. 
Literalmente, eu tinha perdido o chão!                                                       
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quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

AQUELE FIO BRANCO...


Acordou às oito e meia. Escovou os dentes, como sempre. Olhou no espelho, como semptre. E sorriu, para ficar engraçadinha...

Bastou encontrar um fio de cabelo branco e o seu mundo veio abaixo. Feito um casaco de chumbo grosso em suas costas. Justo no dia que completava trinta e cinco anos. Um cabelo branco! E uma ruga de expressão mais acentuada no canto da boca. Lembrou da dor na lombar da semana passada. E junto com o pacote, a carta do plano de saúde avisando do reajuste quântico, após os trinta e cinco anos. 

Imediatamente pensou no seu aniversário. E que, ao invés das cervejas, seria melhor congelar seus óvulos, caso quisesse engravidar depois dos quarenta... Saiu de casa com a adrenalina saltando pelos poros. Decidiu não chamar Uber, nem táxi. A pé, até o metrô, iria demorar mais tempo para seguir ruminando o acontecimento.     

No trem, as estações iam passando, incrivelmente velozes. Como as estações do tempo. Da vida... Era tudo que não precisava. Ansiedade e envelhecimento precoce. Bem no dia do aniversário!    

Olhava pelo vidro do metrô para ver se via o seu cabelo branco. Nem ela, nem ninguém via. Mas estava lá. Escondido e real. 

Chegou ao trabalho e deu de cara com o Marcos. Aquele que “podia ser que fosse algo mais”, mas nunca foi... Não era paixão, ela sabia. Mas era tanta parceria, tanta coisa em comum... Resolveu, então, pela primeira vez, dar um sorriso e um viés de esperança. 

No final da tarde, o bolo e a festinha de sempre. Com as piadas, de sempre.

Quando, enfim, em casa e exausta, tirou os sapatos e foi olhar novamente o seu cabelo branco no espelho. Agora mais serena, olhou-o como um presente. E sorriu, para ficar engraçadinha...         

Antes de sair para festejar, pegou uma caneta, preparando a lista! Matricular-se no curso de dança. Aprender a surfar nos finais de semana. Reclamar do plano de saúde. Dar mole pro Marcos. Usar mais o vestido azul que levanta os seios e a autoestima... 

E substituir nunca, por talvez, quem sabe um dia... Depois, esticou com carinho o recém descoberto cabelo branco, celebrando a bendita finitude. Que faz a gente andar... pra frente!!!

           

 
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