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terça-feira, 16 de abril de 2024

O BARQUINHO VAI...

 

A tardinha cai. Mãos finas e precisas dobram pequenos papeizinhos e formam figuras que representam paz, amor, felicidade. O origami é arte milenar. Não tenho essa habilidade. Não dobro bem lençóis. Minhas pernas não dobram com facilidade. Imagine dobrar minúsculos papéis com arte e sensibilidade? 

Tentei fazer um balão. Ficou troncho. Em total assimetria. Cheio de varetas e boas intenções. Mas nunca subiu aos céus. Restou-me olhar a arte alheia e ver os pássaros voando perfeitamente ao léu. Eu jamais faria grandes balões que machucassem crianças e incendiassem casas e arranha-céus. 

Num dia de tédio fiz um barquinho de papel. Bem dobrado. Ficou razoável. Tão frágil, o coitado. Soltei mesmo assim, no lago que desembocava no mar. Parei, olhando o seu arrastado navegar.

De longe e cambaleando, seguia miúdo entortando e adernando no lago largo do mundo. Na primeira curva empacou.  Ah, se tivesse uma criança com um sopro de esperança. Ou um pescador experiente pra ajudar... Ninguém. O barquinho naufragou por lá. Minha alma também. Saí sem mais ver. 

O lago continuou calmo. Em mim, a sensação de fragilidade. Do pobre barquinho de papel que me transformei. Origami de minha alma com dobras de humanidade, dor e de tudo que fui e amei. 

Retornarei. Farei um barco mais forte. De madeira de lei, talvez. Levantarei velas. Enfrentarei outras águas. Deixarei de fora as dores e as mágoas. Serei arte contemporânea, focada no futuro. 

Hoje, ainda sou o velho origami.  De um tímido barquinho que vai... quando a tardinha cai...

 

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quarta-feira, 20 de março de 2024

FOLHAS DE OUTONO...


Meu prazer era caminhar nas tardes de outono pelo caminho forrado de folhas secas, caídas das copas das árvores. Foi o tempo ou foi o vento? Eu perguntava e eu mesma respondia, os dois! O outono é assim. Tempo de ventos e renovação. Algo sempre morre. O novo toma lugar.

O caminho de terra sombreado pelos galhos acumulava várias camadas de folhas marrom-escuro, produzindo um crepitar seco e quebradiço ao pisar. Muitas vezes eu ia com os pés descalços para tatear. Apreciava o som de cada passo. E o piar de alguns pássaros completando a trilha natural. 

As aves entocadas também trocavam suas plumagens. De quem é essa pena? Sabiá laranjeira, eu dizia sem convicção. Pode ser que sim, ou que não. O outono é assim...

Nos dias chuvosos a estrada ficava úmida. Também tinha sua beleza. Era o pisar do macerar. Macieza umectante. Alguns pássaros, ainda que distantes nos acompanhavam na esperança de algum bichinho na terra, saltitante. Minhocas. Insetos. Sempre havia um descuidado, coitado. 

Eu ia com minha mãe procurar pinhas para enfeitar o Natal. Mas já? É que as pinhas tem de descansar. Secar bem, para abrir os gomos por inteiro, feito flores de madeira, prontas para enfeitar a ceia. E elas estavam lá, espalhadas pela estrada. Algumas pequenas e quebradas. Outras perfeitas. Colocávamos as melhores no chapéu de palha. E o sol tímido não esquentava nossas cabeças. O outono é assim...

Levávamos, eu e ela, um cajado. Galho duro que eu procurava feito detetive no meio do mato. Logo achava um pequeno e ajudava minha mãe a encontrar um cajado maior para nos acompanhar. O andar era calmo e cheio de perguntas sem respostas. A cerquinha caiu! Foi o tempo ou foi o vento? Os dois. O outono é assim...

Hoje, os passeios e o chão de folhas secas ficaram na lembrança dos outonos da minha infância. Em algum sítio da memória. Tenho pisado em terrenos urbanos. Ouvindo sons de carros e lamentos humanos. As caminhadas na areia resistem, mas as pisadas somem rapidamente com as ondas do mar.

As folhas, o cajado e minha mãe ao lado, continuam eternos. A saudade bateu hoje em mim. Foi o tempo ou foi o vento? O outono é assim...      


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quarta-feira, 6 de março de 2024

REMÉDIO OU FEITIÇO?



Ela deve ter sido bruxa ou feiticeira. Umas dessas velhas curandeiras. Neide tem sempre uma receita certeira. Tornou-se enfermeira. Mas há um contrassenso imenso na escolha da honrosa profissão. Ela não gosta de remédio e tem horror a injeção.

No hospital é exímia profissional. Enfermeira padrão. Ninguém morre em suas mãos. Fiel aos protocolos. Quando é preciso leva o paciente no colo. Mas em casa é só pajelança. Sem o aval da ciência ou indicação de bula. Diz que a natureza é quem cura.

Trevo pra enriquecer. Sal grosso debaixo da cama pra afastar fulana. Alecrim de rama pra dinheiro e fama. Alho contra inveja e maldade. Orégano nas costas pra trazer felicidade.

Na semana em que tudo me deu errado, encontrei a Neide na porta do mercado. Deu logo diagnóstico e mandou seu recado: joga fora o bromazepan. Isso é coisa do diabo!

Depois benzeu com a mão a minha testa e me deu um alecrim. No fim, mandou queimar louro na panela de barro. Obediente como sempre, fiz o preparo. O fumaceiro invadiu a cozinha e o cheiro forte saiu por debaixo da porta e chegou até a vizinha. Respirei com os olhos lacrimejantes aquele remédio de amor, cheia de fé e sem desdenhar. Vai que dá!

Passou um mês e minha vida retomou ao seu normal. O estresse pontual foi saindo aos poucos como haveria de ser. Claro que lhe avisei, dando créditos à receita, afinal Neide é certeira. No tempo da Covid não negou ajuda, nem fez desdém. Na enfermaria salvou mais de cem. Agradecida, chegava feliz contabilizando mais uma vida.

Neide não imagina o ser humano que é. E o poder que tem. O louro queimando é seu amor se espalhando. Um outro tipo de remédio... que também faz bem.


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quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

TRÊS APITOS... E UM TALVEZ

Um cheiro leve de maresia e uma atmosfera úmida no ar. Algumas quadras à frente, o pier do pescador juntava moradores e turistas para a despedida dos navios e dos passageiros que partem mar adentro para breves ou demoradas temporadas de cruzeiro. O som do apito lomgo soa três vezes...

Quem disse que não é bom ficar a ver navios? Procurei o motivo da expressão. Uma crença lusitana de mil e quinhentos e cinquenta e poucos se espalhou com o desaparecimento do Rei Dom Sebastião. Fiéis teriam seguido o novo Messias até o alto de Santa Catarina em Lisboa, esperando a vinda do Rei e sua nau, mas ficaram eternamente a ver navios. Talvez venha daí. Pois não, pois sim!

Quando os navios passam em frente ao pier, os lenços brancos começam a se agitar ao vento em alegres acenos. Alguns tentam reconhecer ao longe seus parentes. Muitas vezes, nem sequer conhecem as pessoas que saem dos seus postos e das cabinas para serem saudadas nas áreas externas do navio. Não importa. Elas retribuem. A ideia da conexão humana é terna. Ter alguém à vista. Um amigo com sorriso. Um amor à espera... O som dos três apitos ecoa forte no ar da partida, embalando nossa alma entretida no rastro ronronoso. Quilha cortando as ondas devagar até que a curva da primeira montanha esconde o navio e o resto imenso do mar.

Uma moça passou correndo ao meu lado na calçada, ensimesmada, não viu o navio, nem o pier, nem aquela gente toda que acenava. Nem nada.

Talvez seja bom passar sem ver. Ando com excesso de adeus. Tenho perdido amigos meus. Sigo tremulando todos os dias lenços brancos e ouvindo ecos do apito de um navio que insiste em partir no entardecer. 

E eles são três... um nunca mais, um vou voltar ... e um talvez!

 

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Foto gentilmente cedida pela amiga Celia Loriggio, tirada da Ponta da Praia em Santos.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

ALMA TAMBÉM PARA!


A gente para. Ou a vida para a gente? Às vezes no meio do caminho. No meio da estrada. É dura a estancada. Não vemos  mais nada. Apenas névoa. Visão miúda e esvaziada.

Tem tempos que são assim.

Minha rede social foi raqueada. Sumiram milhares de amigos de jornada diária, crônicas e memórias compartilhadas. Roubo cibernético para alguém de má fé tentar um delito qualquer. Feliz, por não ter sido uma parada final, cardíaca, letal. Uma parada digital é mais breve, eventual. Junto dela veio uma conjuntivite de três semanas. Alérgica ou viral? Não sei. As duas arderam corpo e alma. Dor, nevoeiro, isolamento. Há noites que duram mais que outras noites.  

Depois veio a calma e o desprendimento. Um respiro mais lento silenciou o lamento. Foi pausa saudável.  Muita rede nos faz mal. Seria um toque providencial?

Tem tempos que são assim...

Até a palmeira imperial por quem eu tinha paixão foi ao chão, gigante e estrondosamente com um vendaval daqueles que agora se tornaram recorrentes. Resposta da natureza ao mal que  lhe fazemos.                                                                                               

As outras duas palmeiras arranquei como quem arranca as raízes de dentro da alma. Empatia não pode ser só palavra.. Ferir alguém é me ferir também. E lá se foram as árvores gigantes que de pequenas plantei. Viraram cepos cortados, sem folhas, bancos tristes e escuros. Os vizinhos estão agora mais seguros. Nós também.

Tem tempos que são assim.

A minha conta em breve será recuperada com os milhares de amigos e leitores e nossas histórias continuarão a ser compartilhadas. Quanto à conjuntivite, curei como muita coisa na vida se cura. Água pura. Gelada. Colocada constantemente de hora em hora, em casa e na enevoada estrada.

No meio da pressa, recordei a lenda do pequeno aprendiz e seu sábio cavalo, companheiro na floresta.

- Não consigo ver nada à frente. Nem gente, nem caminho, nem árvores ou restos de alguma construção. Só neblina densa sem visão. Minha alma para. O corpo para. Ajude-me, alazão!

Consegue ver o próximo passo? Faça apenas isso. Quando menos perceber, terá chegado ao seu destino!

Êia meu cavalinho, devagarzinho, passo a passo, vencendo aos poucos este súbito cansaço.

Tem tempos que são assim...


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quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

AS SETE ONDAS...

Um de janeiro. A primeira onda veio. Olhei aquele mar imenso, senti-me dentro. No ondular tenso desse ano inteiro. Vaivém de esperanças com incertezas. De janeiro à dezembro. Brasil da ressaca, dos arcabouços, orçamentos. Maré no começo. Pulei sem receio!

A segunda onda chegou, com águas que vinham do outro lado do mundo. Trazia os mesmos sentimentos. Onda de extremos. Guerras por terras, atos absurdos. Chorei. Eu não sabia russo, nem árabe ou mandarim. Pulei rapidim.

A terceira onda chegou. Trouxe as queixas e o troco da natureza. Vieram plásticos, tampinhas, além das flores brancas e garrafas de cachaça. De tanto que me calei, que não gritei e me envergonhei. Pulei também.

A quarta onda era virtual. Não fui fundo. Nem pesquei. Apenas curti e pulei!

Na quinta onda vieram os peixinhos. Conversamos rapidinho. Era raso. Dei um aceno rápido, abrindo os meus braços e eles tiveram que partir...

Na sexta onda eu entrei de corpo inteiro. Sem receio. Queria o sal grosso limpando o corpo e a alma. Tirando o ranço desse ano grosseiro.

E a última onda chegou enfim. Era onda pequena. Miúda. Mas foi crescendo. Tinha uma crispa branca de espuma e esperança. Dobrei os joelhos. Olhei para as estrelas. Fiz o meu pedido e voltei pulando feito criança. Ah, essa onda chamada esperança...

Ainda hoje recomeço. Novinha em folha. Com força e sem avatar. Temos um mundo real pra consertar! 

 

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OBRIGADA PELA COMPANHIA NESTE ANO!

QUE VENHA UM NOVO ANO,  INES...PLICAVELMENTE MELHOR. 

CHEIO DE LIVROS E ESPERANÇA!

terça-feira, 14 de novembro de 2023

TROMBA DE CALOR!


O mapa de atrações do Parque temático era um labirinto. Ao invés do musical de sereias cantantes, paramos num mini Zoológico com animais sonolentos e entristecidos.
Um espaço grande e com animais alimentados. Mas o calor escaldante do dia deixava os bichos lentos e entediados. Os maiores, jogados por sobre as pedras, como o urso e o leão, tinham um ar de melancolia naquele enjaulado dia. Eu apertava meus passos e meu coração.   
Avistei os flamingos, os macaquinhos e os nada pacatos suricatos. Muito alegres, um barato! Quem me encantou de fato foi a elefanta, ou aliá. Eu prefiro “elefanta”, o som do “anta” parece combinar com o movimento alongado da sua enorme tromba. Bem longa. De grande e boa milonga. À procura de água para encher a tromba e se refrescar...

Ela começou um lento caminhar em nossa direção. Havia um fosso, mas não era distante e pudemos acompanhar o desfile monumental. Uma massa grossa de fina graça e elegância vindo mansamente com suas centenas de quilos e pele enrugada. Balançado a tromba e a pênsil cauda. Parou em frente do grupo e vaidosa, ajeitou-se para posar.

Cabeça enorme. Olhinhos pretinhos e miúdos. Virou para um lado e para o outro, moveu a tromba, coçando delicadamente suas patas, esfregando a direita na esquerda, num movimento leve feito balé. Senti ali a poesia de Drummond, que dizia se fantasiar em frágil elefante de papel crepom e sair às ruas, desmoronando todos os dias...

Meu coração de algodão quase se desmanchou ao ver o desalento e a solidão. E no meio daquele mini zoológico escaldante veio a vontade nada poética e delirante de dar uma patada gigante em quem prendeu os animais ali. 

Tirem já esses bichos entristecidos... daí!




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VEM NOVIDADE POR AÍ...

NO INESPLICANDO!

AGUARDE!