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terça-feira, 30 de março de 2021

MILAGRES COTIDIANOS...


Os grandes feitos estão todos anotados, no arquivo inchado da nossa memória. Polidos como  medalhas. Alguns, bem empoeirados. Eternizados com o orgulho da fama. Ao recordá-los, o nosso ego se inflama. São as grandes conquistas. O cargo. O diploma. A foto da caridade nos jornais da semana.

Os fatos familiares e emotivos também estão protegidos num arquivo vivo. O casamento. O nascimento dos filhos. Os netos, bisnetos... Numa extensa pasta, denominada  “ lado bom da família”. Relícário hereditário de maravilhas!

Mas onde moram as memórias mais simples, dos milagres cotidianos? Mais divinos que humanos? Momentos de anônima beleza. Que vem sem anúncio. Vem da natureza.

As formiguinhas carregando folhas gigantes em suas costas. Parecem tão dispostas e suportam sem reclamar. Os insetos e sua rotineira folia, lambendo as flores, provando o néctar do dia. Os peixinhos na beirinha. Hoje mesmo vi um cardume deles. Ligeiros e perto dos meus pés. Meio metro apenas. Voltaram correndo pro mar. Vou me lembrar?

São tantos milagres. O céu ficando laranja. O tear mágico e geométrico das aranhas. As andorinhas voando em jornadas intensas. A névoa densa. A lua redonda surgindo atrás da montanha.

Ontem, um jovem em seu quintal de chão pobre, dançava na chuva um balé clássico e nobre, de rara beleza. Quanta delicadeza! Vi sua imagem de passagem... 

Milagres. Milagres sem registro. O ovo quebrando e pronto, um pinto! Na minha janela nasceram dois pombos irmãos. Um branco e um preto retinto. Milagres todos os dias. Milagre da vida! Que nem sempre se arquiva. A vida simples de todos nós, seletivos mortais. 

Olhemos bem os sinais. Os pequenos milagres que todo dia a vida traz!   


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terça-feira, 16 de março de 2021

FRUTAS DESNUDAS...

O cheiro forte e cítrico não saía das mãos e dos dedos. Impossível comer as mexericas em segredo. As mangas também faziam alarde. A Bourbon deixava nos dentes, fiapos em forma de grades. E a manga rosa com seu suco amarelo escorria do punho ao cotovelo. Lamber era o jeito feio, porém barato, para não manchar o pano de prato.

As frutas nos divertiam com suas fatias e fantasias. Faziam a família sorrir. Minha tia me apresentou o caqui. O caroço quebrado ao meio e a surpresa de achar dentro dele, os talheres da mesa. Garfo, faca ou colher? O que vier... Só não gostava do caqui chocolate quando pegava de surpresa. Na primeira mordida, o travo na língua de aspereza.

Banana, quem não ama? Os cachos, a cor amarela e o descascar que a desvenda por inteira, nua! Frita, amassada ou crua. Deitada sob o sorvete com cobertura. Pura escultura e deleite. E a melancia, sorrindo com gengivas róseas? Aquosas e deliciosas.

Meu pai era craque em descascar laranjas. Era quase perfeito. Com a faca deslizando num ato contínuo e em movimentos circulares. Ele ia criando os anéis-laranja de cima até embaixo. Restava a casca inteira e vazia. O miolo, a gente comia. Ou espremia. Frutas flertam com brincadeiras. Quem nunca roubou uva na feira? Não estourou com a mão o caroço do mamão? Capelinha de melão é de São João...

Quando adolescente eu cravava os dentes na maçã deixando na polpa a minha mordida personalizada. Lembrava a capa do caderno que eu usava. Às vezes, eu cortava a maçã ao meio feito a marca da Apple, no meu primeiro disco dos Beatles. Deus estava alegre na hora de criar essas frutas divertidas, boas também na sobremesa. Criou para o Natal, cabinhos chiques nas cerejas!

Mas nunca me dei bem com o abacaxi. Deixava por último para descascar, sabendo que a vida, tal como a casca, algum dia iria me machucar...

Agora não é hora. Vou comer doces amoras.


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terça-feira, 9 de março de 2021

VINHO NA SOPA...


    
Eles se reuniam à mesa todas as noites. A portuguesa, o marido português e os três filhos nascidos no Brasil. Nada entre eles era muito gentil. Na hora da janta, além do vinho, a família derramava provocações.  
A sopa está sem sal e fraquinha! Porque não levanta e pega o sal na cozinha? O jantar prosseguia, sem desculpas, nem pena. As palavras afiadas faziam parte da cena.  
Estive nesses fartos jantares regados a vinho e bom bacalhau. Lembro, em cima do fogão, dos feixes de peixes salgados e alheiras portuguesas, um tipo de linguiça com pão e colorau. O filho mais novo entornava vinho dentro da sopa. Caldo verde. Ou sopa de macarrão, qualquer uma que fosse. Ele entornava um copo de tinto doce, misturando lento. Gota a gota. Aquilo me azedava por dentro... 
Havia sempre rabanadas. O marido se orgulhava. Quem trabalha, come dobrado! E enchia novamente seu prato até a borda. O portuga levantava as três da matina para abrir a padaria. Levava sozinho a pesada lida. Para os filhos, sonhava outra vida. À noite, já cansado, trazia o bacalhau e o sonho de terminar, enfim o seu imenso sobrado! 
Durante os anos que participei dos jantares pensava no sentido de tanto sacrifício. Sempre adiando o passeio. E a volta à Terrinha que nunca veio. A casa nova ficou pronta em janeiro de dois mil e dezesseis. Em maio, um infarto levou o português. 
A mulher ficou com o sobrado. O filho mais velho herdou a sina e a padaria. Vai casar e trabalhar dobrado para comprar um outro sobrado e mais uma padaria. O filho mais novo... continua colocando vinho na sopa. Inventou também de colocar coentro.
A triste notícia... me azedou ainda mais por dentro!      


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