Ninguém passava perto dela. De
noite, então? Só matusquela. Ficava na curva da estrada de terra
batida e avermelhada. Nenhuma casa ou comércio na quebrada. Era feita de cimento
queimado do chão ao teto. Na frente, arame farpado. Alerta para se ter muito cuidado.
Mesmo ao entardecer, no vão sem porta e sempre aberto, dava pra ver o interior simples e mal cuidado da capelinha abandonada. Pequena e escura. Cheia de estátuas sem cabeça e vasos quebrados. Tudo no chão espalhado. Anjos caídos e santos de gesso largados! Diziam que era assombrada. Eu tinha um medo impregnado.
Com o passar do tempo, soube dos devotos que é uma antiga tradição. As imagens de santos quebrados não devem ser jogadas fora. Melhor é deixar na capela, rezar e ir embora. Cruz credo! Nossa
Senhora! Nunca entrei naquele lugar. Nem ao menos cheguei perto.
Preferia igrejas maiores. Arejadas. Com Santos completos e intactos.
Em Minas, na linda Igreja matriz de
São João Del Rei, quase todos os santos tem cabelos humanos. Alguns, negros e empoeirados. As santas, com cachos encaracolados. Às vezes, louros e
enchumaçados. A maioria porém, com cabelos lisos e desformes. Uma tradição secular. Foi preciso aos poucos me acostumar...
Os cabelos chamaram mais a atenção que o ouro das paredes e o exagero barroco que não deixava um vaziozinho sequer. Quem teria doado aqueles cabelos? Beatos pagando promessas? Ou provas de amor? Cortar o cabelo e doar para o Santo era um sacrifício e
tanto para conquistar o coração de uma mulher. Ouvi isso numa canção do Clube da esquina. Ah, Minas! Santos, igrejas e uma certa magia.
Fiquei um tempo olhando os altares. As imagens. Os cabelos de verdade. Lembrei da capela pequena e simples da curvinha da estrada. Que me dava medo com os seus santinhos quebrados. Tristes e desolados.
A gente muda com o tempo. Hoje, quem diria, naquela pequena capelinha, em paz com Deus e sem grandes assombrações... eu entraria!
Levaria uma figa.
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Tudo impressiona e dá um certo medo.a capelinha sinistra, as igrejas com Santos com cabelos humanos.. meio sinistro.
ResponderExcluirNossos medos vão mudando, acho até q crescendo com a idade.. não sei..
Mistérios.
Uma viagem aos templos do sagrado, ao monstros criados na percepção fértil de uma criança. Seu texto nos surpreende no transpor com uma delicadeza de algodão a magia das fases da vida, as dores do crescimento, de estranhos hábitos humanos. É de arrepiar o uso de cabelos em Santos. É de arrepiar o espírito seu olhar perspicaz para com a divina comédia humana, para com nossas contradições e medos irreais. Sem véus, sem cenários de Dante
ResponderExcluirSim Margareth... quantos monstros de nossa imaginação vão se esfarelando em nosso caminho adulto. Hoje, nossos temores são mais reais e concretos... quem dera, fossem uma simples capelinha com Santinhos quebrados... Obrigada por sua rica e sensível participação... bjs
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