Chuva fina. Cena comum nas noites frias. Na esquina da Augusta com a Paulista eu estava sozinha à espera do trólebus que deslizava com seus suspensórios de borracha na extensa e vagarosa subida. Íngreme, feito a vida.
Meus pensamentos desviavam dos carros, ignorando as buzinas, enquanto eu um aperto estranho invadia meu peito jovem paulistano.
O sinal se fecha e então, tudo em mim vira um grande e retumbante silêncio. Ouço apenas e claramente o tilintar dos cascos dos cavalos se aproximando. Mulata e Ferrugem! Os animais que puxavam a rústica carroça de meu avô, abarrotada de sacos de cereais para vender na feira. A feira livre da Paulista.
Na verdade, era uma feirinha que acontecia aos sábados, no final da Avenida, endereço nobre dos casarões e das últimas fazendas dos barões do café. O dia começava às três da manhã e junto com meu avô, ia um ajudante e um lampião para iluminar a escura e íngreme subida da rua.
Às vezes, o peso era tanto, que eles desciam da carroça para poupar os cavalos amigos. Ferrugem e Mulata trabalhavam duro, como meu avô. Ganhavam favos e afagos. Sentiam na pele a dor e a gratidão.
Na hora singela do pregão da feira, os comerciantes transformavam a avenida em festa, com suas frases bem humoradas e sorrisos largos. Já na Consolação, grandes árvores na mata virgem e densa completavam o cenário antigo da década de quarenta.
Meu avô ia gostar de ver os artistas de rua, as bandas de música e os ambulantes, agora aos domingos, devolvendo à avenida Paulista, a antiga alegria, a caminhada, o lazer.
O ônibus elétrico chega. Subo rapidamente, olhando pelo vidro de trás. E num lusco-fusco esbranquiçado e mágico, vejo o vulto da velha carroça, os cavalos e meu avô, com o lampião na mão.
Deu um breve sorriso e um carinhoso piscar de olhos. Depois, fez a curva fechada na primeira alameda e sumiu no meio da noite, no meio do nada.
O tranco do trólebus me fez trepidar. Outro tranco e tudo voltou ao normal. A chuva, o frio, os carros e as buzinas....
Menos meu coração, que continuou apertado, naquele galope ancestral.
* *
Foto: Sãopauloinfoco
https://www.saopauloinfoco.com.br/rua-augusta/
Tão legal.essa volta ao.passado, dá para sentir e até ver perfeitamente..
ResponderExcluirQuase estava lá.....
ResponderExcluirQue lindo! viajei no tempo.
ResponderExcluirFeliz pela sua, nossa viagem. Abços.
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