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quarta-feira, 6 de novembro de 2024

AS VELHAS BOLINHAS AZUIS...


Todo ano é igual. Nunca sei ao certo o dia de montar minha árvore de Natal. Vinte de novembro? Um mês antes? Primeiro de dezembro? Ainda bem que alguém estabeleceu o dia seis de janeiro para o seu desmonte. Aí é moleza. Sem incertezas. Sem muito pensar.  Quanto às bolinhas velhas dos anos que passaram, para mim continuam sendo um dilema. Não consigo me desvencilhar.

Não sou de acumular coisas. Guardar papeizinhos, caixinhas, vidrinhos e coisinhas materiais. Pra ser sincera, nem documentos importantes eu guardo. Muitas vezes, somem e nem dão sinal. Mas com relação às bolinhas de Natal, bate uma coisa, sei lá, sentimental. 

Tenho seis ou sete bolinhas azuis muito descoradas. Desbotadas. Feias de fato. Mas que não consigo desprezar. Todo ano é o mesmo movimento. Armo a árvore. Compro bolinhas novas. Modernosas. Com glitter. Purpurina. Laços de fita. Mas na hora de jogar fora as azuizinhas... Velhas e desbotadinhas. Vem aquele aperto.O coração encolhe, vira bolinha dentro do peito. E me rendo às recordações.

Estiveram em tantos Natais com a gente. Ouviram canções em coros estridentes. Viram nossos olhos brilhando a cada presente. E à meia noite, os abraços mais quentes. Como posso jogar fora por estarem velhinhas e desbotadas? Que santa desalmada!

Um ano até tentei. Coloquei no cesto da lixeira. Mas logo resgatei. Que loucura! Jamais desta maneira.Vou dar para minha mãe. Ela enxerga pouco, quase nada. Não iria se importar com as bolinhas desbotadas. Que nada! Rejeitou de cara. Oras, filha. São tão baratinhas. Troca todas as bolinhas! 

E lá trouxe eu de volta, as bolinhas feinhas e azuizinhas para casa. Este ano, pensei em não colocar na árvore e deixá-las na caixinha. Mas é discriminar do mesmo jeito. O meu dilema continua. E antes que eu tenha que fazer muita terapia... 
Alguém quer ficar com as minhas bolinhas?


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sexta-feira, 1 de novembro de 2024

FINADOS, MAS NÃO!



Olho com ternura e delicadeza as fotos da família espalhadas por sobre o velho piano. Consigo ver o nariz aquilino da avó, na bisneta já crescida. As duas tão lindas! E os olhos verdes da tia avó? O mesmo da prima distante. Preciso visitar urgente aquela gente. Saber se tudo está bem. Quantos filhos eles tem... 

Vejo agora, a testa alta e a calva acentuada do avô, no meu pai. Do meu pai, no meu irmão. Eles não gostam dos sinais. Ficam todos iguais. Avô, neto, filho e pai. Carimbo da geração. Carecas, com muito bom humor...

Paro um pouco mais na foto do meu irmão mais velho. Já foi tão pequeno um dia. Está ali, criança miúda. Roupa de batismo! E que sorriso... 

Ah, as fotos antigas, desfiam um enorme novelo. Tristes e alegres enredos. Importantes e agora, inúteis segredos. Histórias de descendentes imigrantes. Uns sobreviventes. Outros vivos e ausentes. Muitos, já partiram. Mas continuam nas fotos, altivos e sorridentes.

Estranho. A enorme e silenciosa paz que me invade quando olho com saudade as fotos de família sobre o velho piano, agora desafinado. Castigado pelo tempo e pelos dedos cruéis dos bisnetos levados. Sinto nas fotos uma espécie de perdão coletivo. Dos erros cometidos. Dos gestos sem sentido. Das mágoas sufocadas. Que ainda embaçam e deixam mais triste a imagem de alguns personagens. Bobagem! Estão mortos. Eu é que viajo nos parentes idos e suas marcas de passagem. Parecem ainda presentes. Dentro e fora de mim. Numa espécie de tatuagem que salta nas asas dos querubins. 

Minha mãe e seu vestido de noiva com enchimento e tecido de cetim. Meu pai com o filho nos ombros, no jardim. Meu querido irmão que já se foi... Paro nele alguns minutos. A morte não dói. Nas fotos, ninguém mais sente.

A  saudade é que dói... ela é presente.  


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quinta-feira, 31 de outubro de 2024

O SAPATO DA MARIA...

A criançada se juntava debaixo da velha escadaria. Não havia lugar melhor para ouvir histórias de medo contadas em segredo pela tia Zilda.                                   

O sapato da Maria era a nossa preferida. A luz na saleta, sempre fraquinha. Acesa, só a lâmpada da cozinha dando um tom amorcegado ao ambiente escuro e pálido.

Tia Zilda contava a história da pobre Maria, empregada por uma mulher rica e de miserável coração. Era quase escrava em sua mansão. Ganhava muitos insultos e pouco tostão.

Maria não desistia. Tirava dali o sustento para cuidar dos seus pais doentes. Um enredo triste demais se desenhava em nossas mentes. Uma megera impertinente, de verrugas peludas, cheirando a mofo e resmungando contra as paredes.

Certo dia, a cruel senhora foi enxotar um cãozinho que lhe pedia comida e carinho. Ao sair correndo atrás do cão, atravessou a rua sem atenção e foi colhida por um caminhão. Era horror e tragédia. A criançada vibrava com a ideia.

No enterro da mulher, a família agradeceu à Maria tamanha dedicação. - É justo que leve daqui uma recordação! Maria lembrou da festa da família e que só tinha um chinelo de dedos remendado nas tiras. Pegou de presente um fino sapato de salto alto e levou para casa, colocando-o debaixo da escada.

Passados três dias, Maria dormia, quando ouviu o som de passos se aproximando. Encolhida nos lençóis, tremeu todos os dentes já imaginando em prantos quem era. O fantasma da patroa queria de volta o que era dela! 

Tia Zilda então mudava o tom da voz e tremulava feito fantasma, dizendo a frase que a gente tanto esperava... - Maria, me dá meu sapato! - Maria, me dá meu sapato! Maaariaaaa...  

E um par de sapatos caia bem no meio da roda, jogado do alto da escada. Tudo orquestrado. Era criança pulando pra tudo que é lado.

Todos previam o momento. O auge era soltar o grito que vinha de dentro. A história se repetia. A gente sabia de cor, mas pedia e pedia... conta de novo, tia, a do sapato da Maria!

 

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quarta-feira, 23 de outubro de 2024

A GRAÇA, DO JINGLE.


A ideia nasceu pronta. Como se soubesse desde sempre o caminho e esperasse o momento certo de acontecer.

Às vezes é assim. A gente tem a sensação que a criação foi feita nas nuvens e a gente trouxe aqui pra Terra.

O jingle da Graça telefones, o mais famoso e sem medo de errar, o mais tocado nas décadas de 80 e 90 no rádio santista, nasceu assim. De bate pronto.

O Boka era o meu amigo músico da faculdade. Foi ele que me convidou para fazer a peça publicitária. Tínhamos na época, vinte e poucos anos. Curtíamos as mesmas músicas e bandas. Ele já tocava bem o violão e eu ainda arranhava uma ou outra canção. Às sextas feiras, havia música no corredor da faculdade. Sexta Super. Lá começou nossa amizade.

Que tal fazer um jingle, loira? Você bola a letra e eu coloco a música. Não tem ninguém aqui em Santos produzindo jingles. Topa?

O convite foi mágico. Cheguei em casa com um pedacinho de papel escrito à mão com caneta Bic... Graça Telefones. Instala em três dias. 378537. Repete. Peguei o velho violão herdado do meu irmão da época da faculdade de Medicina, que conservava como prova da sua trajetória vários esparadrapos grudados na tampa e comecei a dedilhar na cozinha da casa, sem ninguém pra ouvir ou palpitar.

Meu gosto musical sempre foi pop rock. Mas ideia que vem fácil a gente não rejeita e me veio à cabeça um samba de breque. Surpresa!

Imaginei um cliente querendo comprar uma linha telefônica (na época era cara à beça uma linha) e mandei um dó maior...  – ALÔ! EU PRECISAVA DE UM TELEFONE!

Daí pra frente a sequência veio vindo. Alguns acertos aqui e ali e em meia hora eu já tinha dado à luz na folha de papel, à letra que viralizou.

No dia seguinte mostrei para o Boka. O jingle tinha o lance comercial e ele deu os toques refinados no instrumental. Ficou redondo. Fácil de cantar. E o telefone repetido duas vezes, como pediu o cliente, tinha tudo pra grudar nas mentes.

Agora só faltava gravar. Mas onde?

Na rádio Tribuna não deu certo. Partimos para o Heavy Metal, casa de shows que sacudia a cidade com o rock nacional do momento.

Foram horas de ajustes nos equipamentos. Fios invertidos, microfonias e dez versões gravadas. No final da noite, um ruído indefinido apareceu do nada e todo o trabalho foi desperdiçado.

Vamos gravar no Estúdio do Blow Up. Ou vai ou racha!

Lá fui eu e o Boka, com a ajuda da banda amiga, para uma nova empreitada.

O Luigi, um cara tranquilo, cheio de filhos e que tinha uma livraria no Gonzaga, dividia comigo a cantoria. Tinha que gravar tudo junto numa só gravação, voz, instrumentos e locução. Sem cortes. Sem erros. Sem discussão.

O saudoso *Robson pediu silêncio. Um, dois, três... gravando! Numa só levada, o jingle saiu por inteiro.

-"ALÔ! Eu precisava de um telefone. Quando um amigo indicou seu nome. Quero saber qual a ligação, muito prazer, satisfação! Pra colocar você na linha, eu tenho um plano que é uma gracinha. Financiado e com garantia, pra instalar leva só três dias. Seu telefone vai fazer assim... tirrim tirrim tirrim tirrim! 378537. Repete... 378537. Promete. Não desligar de mim. Promete, não desligar de mim! GRAÇA TELEFONES, com você sempre na linha!"

Jingle pronto. Em pouco minutos. Ficou com quarenta e cinco segundos. Era longo, mas na época era fácil negociar com as emissoras.

Não tinha quem não cantasse. Até hoje, encontro por aí alguém que lembra da letra e do refrão. Anunciantes mais antigos usam o jingle como referência na hora de fazer suas peças publicitárias.

Simples. Simpático. Artesanal. Coisas que acontecem. Sorte, ou acaso?

Sei não. Só sei que virou Hit! ALÔ!...


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*Robson Melo, guitarrista e backing vocal da Banda Blow Up.

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QUER RECORDAR O JINGLE?

ouça aqui no CANAL INESPLICANDO  You Tube.

https://youtu.be/OwAlkaDVGaY?si=0hbXqpeSrx4KS8DO

 

 

 

 



 


quarta-feira, 16 de outubro de 2024

CASA EM CONSTRUÇÃO

 

Nada se parece mais com uma casa em ruínas, do que uma casa em construção. Essa frase, repetida alegre e diversas vezes pelo Dr. Pio, velho amigo da minha família, levei comigo para a vida adulta e hoje posso cravar que ele estava certo! Concordo plena e profundamente.  

Vítima de várias reformas e construções, às vezes mais duradouras que os profissionais que contratei, percebi que sempre é preciso destruir mais um pouco. Quase sempre é preciso destruir tudo, para erguer o novo.  

E como é duro olhar para os tetos arrebentados, os forros arrancados, pisos destroçados e dividir com o que restou e os pedaços de lembranças e o mesmo espaço. São caquinhos, pó, aborrecimentos. Tempo, dinheiro, cimento e cal. Ruínas. 

Sem falar nos ajustes que temos que fazer. Dormir em outros lugares. Criar outros espaços. Cozinhar na sala. Dormir no corredor. Sair do alto da cama para deitar humildemente no colchonete, jogado num cantinho qualquer do chão. A casa, em construção.

Tão sucateada que foi com o tempo e as intempéries. Desabamentos. Desalinhos. Fendas. Corrosão. A tinta fraca, feito alguns sonhos, a chuva foi quem levou.  

Mas chega, então, a hora de reformar. Construir algo novo. Sem adiar. Chama o engenheiro. Chama o pedreiro. Chama o encanador! Uma nova empreitada vai começar. 

E como tudo, a reforma é também passageira. Um belo dia, o cimento rejunta, o piso se emenda, a tinta seca e a casa fica fantástica! Raros, os vestígios do que ela já foi. Só a sombra na parede, de um prego que machucou mais fundo. 

E o Dr. Pio estava certo. Nada se parece mais com uma casa em ruínas do que uma casa em construção. Falou com a sabedoria de quem reformou muitas vezes a sua casa. 

E a vida!

 

 *                                  *                         Obrigada pela visita no blog Inesplicando.  Passamos de                        330 k de views                                 


     

terça-feira, 15 de outubro de 2024

O TOQUE DO MESTRE


 A Avenida Paulista era um mar de gente às sete da manhã. Eu, com a pressa dos meus dezessete anos, carregada de livros, cadernos e planos entuchados numa mochila azul marinho, corria para chegar a tempo na aula do cursinho. O "Vaticano" era a aula na sala de maior tamanho, onde eu me juntava a cento e cinquenta vestibulandos sonolentos como eu e que iam acordando lentamente, à medida que a aula ia passando.

Eu não sabia ao certo porque tinha escolhido o curso de biológicas. Talvez, por ser o mais forte. Ou por influência da professora de ciências. Uma japonesa brilhante em quem eu me inspirava na época do colégio. Aprender com ela foi um privilégio.

Naquela sala gigante, eu ficava com meus sonhos, espinhas, colinhas, letras de canções americanas e algumas tarefas estranhas. Física, matemática e a mais terrível de todas... a química orgânica! Eu detestava química orgânica. Meu Deus, para que serve o benzeno? Sei que tem seis ligações, ao menos.   

Foi num dia de Vaticano que o toque iluminado de um anjo ou arcanjo aconteceu. Ele nem percebeu. Foi um toque de mestre. Toque divino dado com carinho, no meio da aula de português...- o que faz aqui, cara Inês?

Era o professor Arlindo que descia do púlpito e vinha até a minha cadeira mexer com minhas certezas e mudar uma vida inteira. Parado ao meu lado, enquanto todos se preocupavam com os textos de interpretação, ele segurou o meu caderno em suas mãos. Olhou as folhas soltas. Rabiscos pelos cantos. Letras dos Beatles. Frases importantes que eu guardava e nem sempre lia. Coloridos celofanes e poesias.

O mestre foi direto, com sua voz literária de velho conhecedor...     - Tens alma canceriana! Nesta sala de biológicas? A quem enganas? Você é de humanas! E apontou meus rabiscos, meus textos e os inclinados traços artísticos.

Ainda hoje sigo escrevendo, rabiscando, inventando, contando histórias e crônicas do meu tempo... Culpa do toque certeiro. 

Valeu, Mestre Arlindo! Eu não gostava, mesmo, de benzeno.


*                        *                                                     



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quinta-feira, 26 de setembro de 2024

A SANTINHA DO RELÓGIO

Foi uma breve caminhada, passando em frente à Igreja Coração de Maria na Avenida larga e movimentada.

Junto ao poste, no meio de entulhos amontoados, portas e armários quebrados, eu vi o belo oratório. Madeira escura. Detalhes em barroco. Agonizava entre os trecos e objetos largados. Dispensados pela igreja sem chance de restauração. Dei quatro passos adiante sem pensar no resgate. A ideia de revirar toda a tralha, no meio das pessoas na avenida ensolarada era impensável.

Não pensei. Fiz. Feito um cãozinho farejador e voraz fui revirando a coisarada até puxar a peça cobiçada sem olhar para os lados, levando pela mão por três ou quatro quarteirões até chegar em casa.

A peça era quase perfeita. A embúia, com entalhes frontais sem nenhum dano. E na parte de dentro, ao invés da santa que julguei ter quebrado ou sido roubada, uma espécie de corda de alumínio enrolada. Corda de relógio! Santo engano. Mas com um pouco de arte e fé, um oratório poderia ser criado.

Retirei a corda do fundo e saí para encontrar uma santinha que coubesse lá dentro. Que santa é essa, azulzinha e de olhos pretos? O vendedor não soube dizer... É a Santa do relógio? Brinquei. Ele concordou, interessado em vender. É sim. Dizem que é milagreira.

Nesse instante ela virou a santa do relógio. Ficou na parede no seu novo oratório num cantinho especial da minha casa. Algumas visitas perguntavam como ela agia. É senhora do tempo! Adianta o que tem urgência de ser e faz retardar o que precisa de mais tempo pra se resolver.

Assim foi por anos o nosso segredo. Amigos ligavam pedindo ajuda pra minha santinha do Tempo. Talvez tenha sido um pecado. Mas se ela fez algum milagrezinho, já está pago.

Angela não conhecia a história e cuidava da casa quando derrubou o oratório que quebrou em duas partes. A santinha do tempo partiu em mil pedaços. Nunca mais achei uma imagem parecida.

Hoje o oratório está no sítio da família. Restaurado por meu irmão que lhe deu novos contornos, tintas e uma pátina rosada com efeitos. Colocou um terço e uma Nossa Senhora de Lourdes dentro.

Até quando vai durar? Não sei. Quem sabe é o Deus do tempo. Sei que entra santa e sai santa e o relógio abandonado continua um oratório. E boto fé... é milagreiro!

 

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