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quarta-feira, 23 de julho de 2025

DUPLO RESGATE



Ele tremia, assustado. Num vaivém encabulado, tentava cruzar a louca e fria avenida.

Magro, medroso e molhado. Perdido entre os carros — prováveis algozes — que passavam velozes. Presenciei a cena de medo real e toda a aflição do pequeno animal.

O peludinho ia e voltava. Depois, de novo tentava. O carro da direita parava. O cãozinho seguia, e o da esquerda acelerava.
— Meu Deus, quase morreu!
Um carro freou. Que bom! Mas o cão refugou.
E foi assim: uma agonia sem fim. Eu não sabia como ajudar, nem como resgatar.
Ele corria pra frente e pra trás num ziguezague de arrepiar.

Chegou, então, um rapaz. Uma moça que ia pra faculdade.
Um entregador de pizza. E um senhor de idade.
Resolvemos que o trânsito todo teria de parar.

Força-tarefa. Ato de bravura — ou loucura.
Foi sem muito pensar: detivemos os carros um a um.
O cãozinho, assustado e com o rabinho entre as pernas, foi lentamente atravessando.
De orelhinha baixa, cruzando a faixa.
Saiu meio de lado, como quem sabe da aflição que nos havia causado.

Olhamos com doçura e cara feia — como olham as mães diante de alguma besteira.
Ou quando soltamos de suas mãos nas ruas e saímos sem pensar.
Elas sabem o perigo do vaivém.
E hoje, nós também!

Somos o vira-lata na avenida.
Sem saber desviar dos problemas da vida.
Doenças. Tragédias. Mágoas reprimidas.
Tentamos, sozinhos, dar conta.
Mas a coisa acelera.
A dor continua.
A gente se desespera.

E pedimos força-tarefa.
Amigos. Parentes. Vizinhos que cheguem depressa.
Venham nos salvar.

Seguimos em frente — e vivos!
Com ajuda e alívio.
Feito o pobre cão molhado, envergonhado e encolhido.

Ninguém sobrevive sozinho.



*                                   *                                 *                               
                    

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terça-feira, 15 de julho de 2025

PÉ SUJO



Era tão bom! Durante o dia, corria e brincava. Subia e descia. As ladeiras e as escadas, na frente da casa. Depois, comia correndo e de novo pra rua voltava. Rodava, pedalava, empinava...
Ás vezes, brigava. Chutava e chorava. Descabelava e sorria. E finalmente, cansava. No começo da noite, quase desmaiando, em qualquer lugar a gente desabava. A mãe, com pena, nem banho dava. E a gente, com os pés sujos, dormia um sono só. Sono profundo. Com pés imundos.

Quem não dormiu com pé sujo uma vez na vida, não sabe o que é bom. Pé de infância cascuda. Pré-digital. De jogos com bola, amarelinha, mãe da rua. Rolimã, bola de gude ou bafo na calçada. E a bicicleta entre os carros, num ziguezague perigoso e acelerado. Um risco danado.

Na chuva então, chapinhando de poça em poça. Nem parecia uma moça! E o pé cada vez mais sujo... - Menina, moleca! Vem se lavar! E a gente por fim obedecia. Mas era um pé de gostosura. Aventura. Inocência. Poeira pura.

Hoje as crianças tem pés com rodinhas. Tênis com luzinhas. E a sola do pé bem lisinha. De quem não pisa no chão, no quintal, na areia... e nem na grama do vizinho! 
Eta infância sem graça, de pé de anjinho...                                                                                                                     
*********

 Crônica inspirada na música de Dorival Caymi... Quando durmo...
                                                                                 youtu.be/zs1J7CLG9ss   




          *                         *                             *                             *                                                        
crônica do livro Inesplicando Vol.1
          


quinta-feira, 3 de julho de 2025

NO FUNDO DA GAVETA...


Eu procurava minha bandana. Lembrava de ter guardado naquela gaveta. Não era original, mas dava um ar de Janis Joplin, em Woodstock. Eu queria isso, uma pitada de rebeldia, na minha fantasia.

Mas o achado mais devastador foi o interior daquela gaveta esquecida. Aquela do meio do armário. Que eu sempre abria só até a metade. E à bem da verdade, eu via somente a parte da frente. Onde estavam as meias de seda que eu usava nos invernos gelados. Todas, com um fiozinho puxado. 

Fui abrindo a gaveta com cuidado. Mãos um pouco frias. Parecia um movimento interno. Quase gástrico. Uma espécie de bulimia. Trazendo de volta coisas não digeridas. Peças guardadas com datas vencidas. Muito bem escondidas. 

Depois das meias, saltaram três sabonetes. Devem ter sido sachês perfumados. Ganhei do namorado. Seriam verdes ou azulados? Agora eram translúcidos, inodoros e amassados. 

Mais no fundo, encontrei uma luva. Minúscula. Mal cabia em meu dedo mindinho. Devia ter uns cinco aninhos quando ganhei da minha tia. Lá estava ela. Com seus dedinhos de sono e incontáveis anos de abandono. 

No final, as lingeries. Duas cintas-ligas! Nunca usadas. Uma violeta. Outra cinza! Os botões não fechavam. Tirei da gaveta e estavam grudadas em um corpete. Bonito. De renda preta. Ainda na moda. Se eu usasse. Se eu soubesse que tinha. Se eu lembrasse da gaveta... 

Eu nem sabia mais o que procurava. Achei uma faixa azul bacana. Poderia servir, ao invés da bandana. Mas foi no fundo da gaveta, que encontrei a ironia. Uma peteca de penas coloridas. E, na base almofadada, um bichinho sorrindo com a frase: bem-vinda! 
 
Era, atrás das fantasias — a minha criança, lá no fundo, escondida. 



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