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terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A CAPELA DA CURVA DA ESTRADA...


Ninguém passava perto dela. De noite? Só matusquela. Ficava na curva da estrada de terra batida meio avermelhada. Nenhuma casa ou comércio na quebrada.

Era feita de cimento queimado do chão ao teto. Na frente, arame farpado, pedindo respeito e cuidado.

Ao entardecer, no vão sem porta e mal acabado, dava pra ver o interior assombrado. A capelinha pequena e escura era cheia de estátuas sem cabeça e vasos quebrados. Tudo no chão espalhado. Anjos caídos e santos de gesso, jogados.
 Eu tinha meu medo ali rondando, engessado.

As imagens quando quebram não devem ser jogadas fora, diziam os devotos. Melhor é deixar na capela, rezar e ir embora. Cruz credo, Nossa Senhora! 

Nunca entrei naquele lugar. Nem  cheguei perto. Preferia igrejas grandes. Arejadas. Com Santos completos e intactos. 

Na linda Igreja matriz de São João Del Rei, quase todos os santos tem cabelos humanos. Alguns,  empoeirados. As santas, tem cachos encaracolados, às vezes, louros e enchumaçados. Na maioria, porém, os cabelos são lisos e disformes. Uma tradição secular.

Os cabelos me impressionaram mais que o ouro das paredes e o exagero barroco que não deixava um vaziozinho sequer. Quem teria doado os cabelos? Beatos pagando  promessas? Provas de amor? Ofertas?
Doar o cabelo para o santo era um sacrifício e tanto para conquistar o coração de uma mulher. Ouvi isso numa canção do Clube da esquina. Ah, Minas! Igrejas e magia.

Mirei aqueles altares. As imagens. Os cabelos de verdade. Lembrei da capela pequena e simples da curvinha da estrada. Que me dava medo com os seus santinhos quebrados, tristes e desolados.

A gente muda com o tempo. Hoje, quem diria, naquela pequena capelinha, em paz com Deus e sem grandes assombrações -- eu entraria.

Levaria uma figa.



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4 comentários:

  1. Tudo impressiona e dá um certo medo.a capelinha sinistra, as igrejas com Santos com cabelos humanos.. meio sinistro.
    Nossos medos vão mudando, acho até q crescendo com a idade.. não sei..
    Mistérios.

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  2. Uma viagem aos templos do sagrado, ao monstros criados na percepção fértil de uma criança. Seu texto nos surpreende no transpor com uma delicadeza de algodão a magia das fases da vida, as dores do crescimento, de estranhos hábitos humanos. É de arrepiar o uso de cabelos em Santos. É de arrepiar o espírito seu olhar perspicaz para com a divina comédia humana, para com nossas contradições e medos irreais. Sem véus, sem cenários de Dante

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    1. Sim Margareth... quantos monstros de nossa imaginação vão se esfarelando em nosso caminho adulto. Hoje, nossos temores são mais reais e concretos... quem dera, fossem uma simples capelinha com Santinhos quebrados... Obrigada por sua rica e sensível participação... bjs

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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