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quarta-feira, 27 de agosto de 2025

HOJE EU SAIO NA CHUVA...

Eu saía na chuva. Brincava no meu quintal, colhendo com as mãos os pingos grossos que caiam feito patacas esfriando o chão. Era a alegria que vinha do céu nas tardes de verão. As gotas desciam pela minha cabeça até os meus pés descalços. No piso liso, um pouco de sabão. Eu deslizava em engraçadas lambanças e escorregões.

Eu saía na chuva. Lembro dos pés encharcados dentro do sapato de couro alemão. A meia empapuçada. Eu batia os pés nas poças do chão. Chegava do colégio em total desalinho. Secava na toalha, guardando no coração o cenário alagado e festivo do caminho. 

Eu saia na chuva, sim. Em especial no jardim. Quando a chuva cessava eu abaixava os galhos das árvores para me molhar um pouco mais. Eu era flexível como os galhos finos. Feliz como o mato molhado, nutrido e saciado. Era a menina ainda verde, buscando água para amadurecer.

Eu saia na chuva até pouco tempo atrás, no meu entardecer.

Hoje, sob um guarda-chuva barato, ando pelas ruas com sapatos apertados. Vejo a secura das pessoas que seguem com passos acelerados. Seguem rápido para voltar rápido. Os anos pesam. Meu caminhar é cansado.    

Mas o verão continua, com suas chuvas vigorosas. O céu chora e a natureza se descontrola. A água vem forte do céu, caudalosa. 

Hoje vou sair na chuva! Vou dançar de novo, chapinhando nas ruas. Vou rodopiar e subir no poste feito a cena da Broadway.    

O que salva minha alma da secura... é essa gota interna, livre,  louca... e sem censura.


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quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O ÚLTIMO TOQUE...

Tarde de sol quente. A Rua da Liberdade fervilhava feito um vespeiro. O recém- aposentado não esquentava como o tempo. Não estava preso à mais nada. Nem emprego, nem mulher ou namorada. Mas alguma coisa ele ainda procurava.

Entrava e saia das lojinhas, subindo e descendo as ruas- artérias que alimentavam o coração da cidade. O centro comercial de tantas glórias, tinha uma espécie de circulação extracorpórea. Indo e vindo de ambulantes, pedestres, pedintes e suas histórias... 

Primeiro pensou em comprar roupas e calçados. Desistiu no ato. Não precisava mais de sapatos. Nem de ternos, gravatas e nós enforcando o pescoço. Poderia viver de moletom e um tênis velho que durasse até o osso.

Não queria livros. Nem relíquias em vinil. Tinha tecnologia suficiente para baixar o que bem entendesse nas redes. Também não queria nada esportivo. Seu time em baixa. Barriga em baixa. Pressão, colesterol e triglicérides em alta. O melhor era correr. Para um médico assim que possível. Talvez, no ano que vem!

Queria se dar um presente. Entrou rapidamente numa lojinha de importados e comprou um despertador. O melhor e mais barulhento que havia. Pagou cem pratas e foi pra casa.

Na véspera do novo ano. Colocou-o para despertar as cinco em ponto. Compromissos não tinha. Nem peru para colocar no forno. Era o Reveillon do abandono.

Queria o prazer imensurável de acordar no velho horário de trabalho e interromper o alarme diário, malvado e intermitente que havia destruído seu labirinto e  alugado sua mente.

O alarme tocou. Esticou as mãos e deu o último toque. O certeiro e definitivo, naquele  pontual e irritadiço torturador suíço.

Depois, tateou sonolento, e mergulhou-o num copo d' água, virando-o de castigo contra a parede.

Aposentado — e finalmente vingado — saiu da cama e foi dormir numa rede.                                                                                   

 

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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O LADO OCULTO DE PARATY

           
As pedras de Paraty escondem segredos que ninguém, nem os últimos calceteiros,  sabem decifrar. Paraty tem história escondida. Árvores que saltam das paredes. Igrejas e casarios. Fantasmas da abolição.

As ruas de Paraty não gostam de salto alto. De pedras lisas e irregulares, elas pedem sandálias... Chinelos rasos e humildes, para os pés dos visitantes. Ou até mesmo, pés descalços, como os dos escravos que lá pisaram. Pés sujos de areia, pele grossa, pés de trabalhador servil.

Mas é lá no vão das fendas entre as pedras, que escorrem os maiores segredos... o sangue dos negros que há muito sofreram, a magia da culinária simples de peixes e pão. E a verdade dos livros que nunca estiveram nas feiras de literatura.

As pedras de Paraty tentam esconder as memórias do Brasil colônia e quase conseguem. Mas só até de tardezinha, quando a água do mar, sagrada e salgada, vem e invade as ruas. Lava e leva as lembranças para além do alto mar!

A noite, então, as casinhas pintadas de azul, amarelo e branco fervilham ao som de conversas distintas, de obras de arte, cachaça amarela e futebol. E muita bossa nova o ano inteiro. Afinal, é o Rio de Janeiro!

E na manhã brilhante de mais um dia de sol e um mar verde sem retoques, as escunas se preparam para o passeio, repletas de turistas de diferentes línguas...

Mas é o sotaque carioca que nos avisa alegremente, bradando da proa: - Hora de partir, rumo ao paraíso! E nas tímidas caixinhas de som da embarcação começa a tocar, também em mim, a canção...

“Isso aqui ô ô... é um pouquinho do Brasil iá iá...”    

E como é!

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quarta-feira, 23 de julho de 2025

DUPLO RESGATE



Ele tremia, assustado. Num vaivém encabulado, tentava cruzar a louca e fria avenida.

Magro, medroso e molhado. Perdido entre os carros — prováveis algozes — que passavam velozes. Presenciei a cena de medo real e toda a aflição do pequeno animal.

O peludinho ia e voltava. Depois, de novo tentava. O carro da direita parava. O cãozinho seguia, e o da esquerda acelerava.
— Meu Deus, quase morreu!
Um carro freou. Que bom! Mas o cão refugou.
E foi assim: uma agonia sem fim. Eu não sabia como ajudar, nem como resgatar.
Ele corria pra frente e pra trás num ziguezague de arrepiar.

Chegou, então, um rapaz. Uma moça que ia pra faculdade.
Um entregador de pizza. E um senhor de idade.
Resolvemos que o trânsito todo teria de parar.

Força-tarefa. Ato de bravura — ou loucura.
Foi sem muito pensar: detivemos os carros um a um.
O cãozinho, assustado e com o rabinho entre as pernas, foi lentamente atravessando.
De orelhinha baixa, cruzando a faixa.
Saiu meio de lado, como quem sabe da aflição que nos havia causado.

Olhamos com doçura e cara feia — como olham as mães diante de alguma besteira.
Ou quando soltamos de suas mãos nas ruas e saímos sem pensar.
Elas sabem o perigo do vaivém.
E hoje, nós também!

Somos o vira-lata na avenida.
Sem saber desviar dos problemas da vida.
Doenças. Tragédias. Mágoas reprimidas.
Tentamos, sozinhos, dar conta.
Mas a coisa acelera.
A dor continua.
A gente se desespera.

E pedimos força-tarefa.
Amigos. Parentes. Vizinhos que cheguem depressa.
Venham nos salvar.

Seguimos em frente — e vivos!
Com ajuda e alívio.
Feito o pobre cão molhado, envergonhado e encolhido.

Ninguém sobrevive sozinho.



*                                   *                                 *                               
                    

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terça-feira, 15 de julho de 2025

PÉ SUJO



Era tão bom! Durante o dia, corria e brincava. Subia e descia. As ladeiras e as escadas, na frente da casa. Depois, comia correndo e de novo pra rua voltava. Rodava, pedalava, empinava...
Ás vezes, brigava. Chutava e chorava. Descabelava e sorria. E finalmente, cansava. No começo da noite, quase desmaiando, em qualquer lugar a gente desabava. A mãe, com pena, nem banho dava. E a gente, com os pés sujos, dormia um sono só. Sono profundo. Com pés imundos.

Quem não dormiu com pé sujo uma vez na vida, não sabe o que é bom. Pé de infância cascuda. Pré-digital. De jogos com bola, amarelinha, mãe da rua. Rolimã, bola de gude ou bafo na calçada. E a bicicleta entre os carros, num ziguezague perigoso e acelerado. Um risco danado.

Na chuva então, chapinhando de poça em poça. Nem parecia uma moça! E o pé cada vez mais sujo... - Menina, moleca! Vem se lavar! E a gente por fim obedecia. Mas era um pé de gostosura. Aventura. Inocência. Poeira pura.

Hoje as crianças tem pés com rodinhas. Tênis com luzinhas. E a sola do pé bem lisinha. De quem não pisa no chão, no quintal, na areia... e nem na grama do vizinho! 
Eta infância sem graça, de pé de anjinho...                                                                                                                     
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 Crônica inspirada na música de Dorival Caymi... Quando durmo...
                                                                                 youtu.be/zs1J7CLG9ss   




          *                         *                             *                             *                                                        
crônica do livro Inesplicando Vol.1
          


quinta-feira, 3 de julho de 2025

NO FUNDO DA GAVETA...


Eu procurava minha bandana. Lembrava de ter guardado naquela gaveta. Não era original, mas dava um ar de Janis Joplin, em Woodstock. Eu queria isso, uma pitada de rebeldia, na minha fantasia.

Mas o achado mais devastador foi o interior daquela gaveta esquecida. Aquela do meio do armário. Que eu sempre abria só até a metade. E à bem da verdade, eu via somente a parte da frente. Onde estavam as meias de seda que eu usava nos invernos gelados. Todas, com um fiozinho puxado. 

Fui abrindo a gaveta com cuidado. Mãos um pouco frias. Parecia um movimento interno. Quase gástrico. Uma espécie de bulimia. Trazendo de volta coisas não digeridas. Peças guardadas com datas vencidas. Muito bem escondidas. 

Depois das meias, saltaram três sabonetes. Devem ter sido sachês perfumados. Ganhei do namorado. Seriam verdes ou azulados? Agora eram translúcidos, inodoros e amassados. 

Mais no fundo, encontrei uma luva. Minúscula. Mal cabia em meu dedo mindinho. Devia ter uns cinco aninhos quando ganhei da minha tia. Lá estava ela. Com seus dedinhos de sono e incontáveis anos de abandono. 

No final, as lingeries. Duas cintas-ligas! Nunca usadas. Uma violeta. Outra cinza! Os botões não fechavam. Tirei da gaveta e estavam grudadas em um corpete. Bonito. De renda preta. Ainda na moda. Se eu usasse. Se eu soubesse que tinha. Se eu lembrasse da gaveta... 

Eu nem sabia mais o que procurava. Achei uma faixa azul bacana. Poderia servir, ao invés da bandana. Mas foi no fundo da gaveta, que encontrei a ironia. Uma peteca de penas coloridas. E, na base almofadada, um bichinho sorrindo com a frase: bem-vinda! 
 
Era, atrás das fantasias — a minha criança, lá no fundo, escondida. 



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quarta-feira, 18 de junho de 2025

A PAZ DO BANQUINHO...

                                                              

Preciso, urgente, de um tantinho de paz. Uma paz quietinha. Miudinha. Num lago meio choroso. Com um banquinho branquinho para me sentar em abandono. 

De criança eu buscava as pedras mais roliças e chatas. Alçava o braço para trás e lançava. O golpe ia rente à água e a pedra seguia ligeira, pulando na superfície. Uma, duas, três vezes, quicando. Pai, mãe, filho e filhas! O lago aos poucos ia se agitando.

Menina maluquinha, eu voltava e lançava novas pedrinhas para formar a grande família. Nunca conseguia. A cortina de água inerte e calma do lago respondia com ondas pequenas. Círculos que saiam do ponto do contato e se estendiam em grupo de ondas suaves até a borda final. Logo o lago voltava ao seu estado pacífico natural.

Sinto falta da criança pedra-saltitante que eu era. Um certo cansaço me alcança. Os homens e as fortes pedradas da caminhada criaram ondas gigantes em minha alma. A violência nos ronda. O mundo, às vésperas de alguma guerra tonta. O tempo e a chuva deslizando pelas frestas. A Terra reclama. Caem gelos e perigosas pedras.

Achei enfim o banquinho. Branquinho, no lago calmo perdido no meio do mato. Sentei sem nada nas mãos. É curto o meu tempo e urgente o meu amor. 

Olhei as árvores e o céu quietos e cúmplices da minha paz. O manto da noite desceu com um ar de conclusão. Tudo seguiu calmo, só as cigarras entoavam uma canção.

Si si si si... silêncio.



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A brincadeira de quicar pedras na água é levada a sério por muita gente. O stone skipping tem até uma associação norte-americana e recorde mundial reconhecido pelo Guinness Book... 88 pulos!

https://gizmodo.uol.com.br/pedra-quica-88-vezes-na-agua/

 



segunda-feira, 9 de junho de 2025

SILÊNCIO A DOIS...


Não sei se passaram dez ou quinze minutos. Ou sete horas... Que horas são, agora? Não dei conta. Fiquei ali, maravilhada, em silêncio. Olhando a paisagem. Perdida em longos pensamentos. Ora pensando em nada. Ora viajando por lugares distantes. Indo e vindo na paisagem quieta e relaxante. Instante de paz e serenidade. Coisa que vem com a idade.

Ele, ao meu lado também em silêncio, olhava a imensidão. Talvez, observando as diferentes formas na silhueta de cada montanha. As nuvens. A bruma. A grama. O horizonte reticente... O silêncio cabia ali tão perfeitamente que lembrei de um poeta anônimo que dizia com alma e profundidade... O silêncio não pesa onde existe intimidade. 

Não ter que falar. Nem comentar. Nem explicar. Apenas estar. Os dois quietos. Calados. Lado a lado. E o silêncio a nos completar. Leves momentos em que a vida pede pausa. Depois do stress. Da dor. Da raiva, da náusea.

Depois da festa desgastante. Em que temos que falar. Sorrir. Comer. Cumprir. Postar. E obrigatoriamente ser feliz... Como é bom silenciar. Aquietar por um momento. Refazendo a alma por dentro. Sozinha, só no pensamento. Sem dever a cumprir. Sem meta a alcançar. Apenas observar. Ser. Estar. Respirar.

Ficamos ali, cada um no seu silêncio. Juntos, eu e ele. Sem nada a dizer. Foram duas ou três horas... Teriam sido semanas? Só alguns minutos de êxtase e brevidade, no melhor silêncio.    
O silêncio divino... da cumplicidade!     



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terça-feira, 3 de junho de 2025

O REMENDO XADREZ


Eu não gostava dos rojões. Dos estalos. Da explosão! Gostava do cheiro da festa junina. Cheiro de pólvora. Fumaça. O ardido nas narinas... Até hoje, isso me lembra um tempo feliz. Festa simples. Gente simples. Do interior caipirês do nosso país.  

Todo ano era igual. Já em maio, as professorinhas dedicadas começavam a combinar. Não havia muito o que mudar. Compravam as sedas. Faziam as bandeirinhas. Colavam no barbante. Vermelhas. Amarelas. Azuizinhas. Os meninos subiam nas escadas para enfeitar. O pátio do colégio ficava alegre. Com bandeiras, balões e fogueira. Sem fogo. Só toras de madeira. Tudo no centro da quadra, dando ar de São João. Era lá a quadrilha. Iam todas as famílias... 

Os ensaios começavam um mês e meio antes. Cansativos, mas divertidos. Dava pra matar umas boas aulinhas, com o consentimento raro das professorinhas, que também dançavam festivas. Sofrido mesmo era ouvir durante horas e horas a mesma trilha sonora. Talvez a única música junina do mundo inteiro, tiro certeiro: Pararararararará... E lá ia a gente montar a quadrilha. Olha a chuva. Olha o túnel. Olha a cobra... 

E se de um lado a festa dava trabalho, de outro era mágico e engraçado. Ter um dente pintado, estragado, bem na frente da boca era o sorriso mais desejado. Calças de jacu nos garotos. Nas meninas, vestidos de chita com fitas. E como era "bão"! Remendos na roupa, então...  

Lembro quando eu tinha uns dez anos... Fui escolhida, pela terceira vez, para ser a noivinha na quadrilha. Talvez pelo fato de ser pequenininha. Cabelos grandes. Sei lá. O fato é que eu e o meu parceiro Paulo José Barreiro (não sei porque as crianças lembram o nome inteiro dos amigos mais antigos...) fomos escolhidos, mais uma vez, para sermos o casal.  

Brava,  já em casa, expliquei para minha mãe quase chorando : - Mais uma vez, vou ser a noivinha! – Mas a noiva é a principal. Você não gosta? é uma honradez?  - Mãe, será que você não entende. Eu gosto de remendo. Remendo xadrez! Noiva não usa remendo xadrez... 

E aquele cheiro de pólvora, voltou subitamente, às minhas narinas mais uma vez...



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domingo, 1 de junho de 2025

OS CASACOS DO ARMÁRIO

Bastam os primeiros ventos gelados se esgueirando pelas esquinas, minha alma arrepia e eu corro para abrir a parte alta do armário. Um compartimento meio escondido onde moram os casacos antigos.
Reconheço alguns de invernos passados... A jaqueta rosa que nunca usei. Aperta um pouco. Mas é tão linda! O Blazer xadrez que ganhei da Tia Lucinda. Só uso em reuniões formais. É sério demais. E outro laranja, que custou caríssimo. Uso pouquíssimo. Nem sei se valeu.
São tantos os casacos. O preto não é tão bonito, mas vai bem com qualquer coisa. Uso, quase infinito. Está até puído. Moído. Talvez o coloque hoje. Está decidido! Tão bom não ter muito que pensar...
As malhas também estão guardadas no armário. Olho todo ano para elas. Quando irei usar a amarela?  E o cardigan que comprei há três anos atrás? Usei numa tarde cinzenta, repleta de problemas. Depois nunca mais. Lembrança triste ele me traz...  
Todo inverno os mesmos pensamentos sobre os mesmos casacos. Alguns, passo batido. Nem lembro quanto tempo tem. Alguns, nunca usarei. No final das contas, vou vestir dois ou três.
E assim, eles ficam lá. Os clássicos, os ultrapassados, os mais descolados... Mostrando o tanto que não reinventei. Tantas combinações possíveis e diferentes. Que não tentei. Estão lá os casacos, parados e abraçados. Esperando uma ocasião que não vem. O por quê, eu nem sei. Guardei. Deixei. E todo ano é igual. Tiro alguns deles no outono pra tomar um ar fresco no varal e depois volto tudo para o lugar.

Mas, este ano prometo mudar. Escancarar o armário. Jogar fora as traças. Doar pares incontáveis de sapatos. E deixar apenas o que for vestir.

Os casacos... e os sonhos. Que ainda couberem em mim.      
           
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    terça-feira, 20 de maio de 2025

    SOFIA... QUEM DIRIA!


    Os seios enormes balançavam e saltavam dentro do decote à medida que ela caminhava. Trôpega, saindo pelo portão de ferro em direção à rua. O salto quinze, de pelica, em uma das mãos. E um longo vestido que arrastava papeizinhos amassados, tampinhas e bitucas de cigarro. A barra dupla, já meio suja, rente ao chão...


    Partiu ziguezagueando pela calçada no meio da madrugada num bate papo interno e solitário. Alcoólico. Hiperbólico. Melancólico. Na boca, risos, lágrimas e borras de batom. 
    -É a Dona Sofia! Ela tem saído assim nas últimas semanas, depois da separação, completou o porteiro do clube noturno, com ar de compaixão. Fui acompanhando o seu trajeto mambembe pelas ruas desertas, imaginando os estragos do desamor. 

    Talvez, um casamento de indiferença. Conveniência. Ou uma relação de muitos anos, com apegos financeiros. Briga por dinheiro! Ou, a descoberta de uma amante mais jovem. Uma mulher. Quem sabe, um homem? Ou nada disso. Apenas um porre! 
    Para afastar a solidão de nunca ter encontrado um amor desses desenfreados. De tirar a roupa e os sapatos. Pode ter tido tentativas frustradas ou apostas em pessoas erradas.
     
    A mulher cambaleante seguiu até virar a esquina e sumir na trilha escura da rua, e  dos meus pensamentos. Coisa de momentos. Tão humanos certos tropeços...

    Na semana seguinte, saindo do médico, encontrei a Dona Sofia. 
    Andar reto. Terno tubinho, todo fechado. Scarpin baixo. Figurino fino. Cumprimentou brevemente a secretária, deixando o consultório olhando de resvalo, com seus óculos meio grau e um ar profissional.

    Perguntei quem era, só para me certificar... -Dona Sofia! Ela é terapeuta de casais! Conserta a vida amorosa de todo mundo. 

    Dona Sofia, balbuceiei baixinho... quem diria?



    *                                *                                  *                                      *

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    terça-feira, 13 de maio de 2025

    A FLOR GUARDADA

    Entre as páginas amareladas e o cheiro de papel envelhecido encontrei a flor presa e amassada. 

    Era um arremedo de flor, aparência seca e desmontada, mas ainda flor, embora o tempo lhe tivesse roubado a cor.

    Passei a mão com cuidado, como se acariciasse um pássaro frágil. Tentei lembrar por que a guardei. De quem era? Em que momento da minha vida ela se tornou importante o suficiente para ser preservada? Um silêncio alto me incomodava.

    Aquela flor sem história não me dizia nada e carregava uma rama de possibilidades. Lembrança de um encontro no passado? Onde as palavras foram sufocadas e nas páginas, lacradas? Uma paixão breve que deixou seu rastro leve? 

    Quem sabe, um presente da natureza! A flor caída no caminho se dissolveria num jardim vizinho e eu não a deixaria para trás. O livro, então, tornou-se um cofre. Um abrigo onde o tempo não iria tocar. 

    Ou simplesmente por nada. Eu, criança, tentando esconder a flor roubada. Maldade infantil para ver, um dia, suas pétalas amassadas. 

    Seca, prensada entre as palavras, a flor guardou sua história dentro de outras histórias. O dia em que foi colhida, a luz do sol que brilhava no dia que sumiu no livro e hibernou.

    Eu continuo olhando a flor dormente. Nós, humanos, somos assim. Guardamos coisas sem motivo aparente e esquecemos as mais importantes. 

    Fechei o livro. Deixei a flor onde estava. Quieta e deitada, sem interferir.

    Não quis movê-la do lugar, como se respeitasse sua missão...  de me fazer sentir.


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    quarta-feira, 7 de maio de 2025

    TIRANDO AS RODINHAS...


    Ela andava mais de seis quarteirões. Sempre de tardezinha. Logo após lavar a louça, as roupas, ajeitar as coisinhas. E não era fácil a caminhada. Minha mãe na frente e eu do lado, na bicicleta com rodinhas de alumínio cromado. 

    Devia ter uns cinco ou seis anos. As pernas magrelas roçavam no cano da bicicleta e o pedal escapava, ás vezes batendo duramente na canela. Atravessávamos avenidas, ruas e praças cheias de gente pra chegar numa fábrica onde havia uma imensa plataforma. Pista grande, de cimento. Sem gente. Sem movimento. Devia estar desativada há um bom tempo. 

    Ideal para o primeiro teste de liberdade. Ali eu poderia tirar as rodinhas e, enfim, pedalar sozinha, feito gente grande de verdade. Eram três ou quatro tentativas em vão e alguns medos e frustração. Na semana seguinte, tudo se repetia... Que energia a minha mãe tinha. 

    Ela tirava as rodinhas e seguia sempre ao meu lado. Às vezes, um pouco atrás. Eu ia ziguezagueando e entortando. Pondo o pé e parando. Eu vacilava... e lá estava ela em um segundo. Pronta pra me segurar no mundo. Não tinha como cair. Não podia desistir. Ela sorria e me fazia recomeçar.

    Ah, mãe, que falta me faz. Nesses dias inseguros. É tanta gente cortando nossa frente, jogando nossa bicicleta contra os muros... Já tirei as rodinhas faz tempo. Ando sozinha,  todo o tempo. 

    Às vezes olho para trás... e vejo seu sorriso novamente. Meu porto seguro. Amor confiante. Sempre presente, me dizendo — suave, firme, eternamente:

    — Vai, filha. Valente. E sem rodinhas.
    Estou por perto. Segue em frente!




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    quinta-feira, 1 de maio de 2025

    AMOR COM FRITAS...


    - Minha mãe fez batata frita! 
    Desse jeito, cheio de alegria, o menino me informou o cardápio do dia. Agarrando fortemente minhas pernas e provocando risos nas pessoas que estavam na fila. Depois completou... ela me deu conchinhas também! Tirou umas duas ou três do bolso e me mostrou o seu novo tesouro.

    A mãe, desconcertada, veio rapidamente ao nosso encontro...  

    - Que menino tagarela. Gosta de uma plateia!

    As conchinhas pegamos ontem na praia. - Vamos Nicolas, larga da minha saia! E colocou o garoto no colo, ganhando um forte abraço no pescoço e um beijo estalado no rosto.

    Aquele gesto e os olhos brilhantes do menino aqueceram a tarde concreta e fria no meio da longa e demorada fila, a mistura de amor com batata frita. O prato bom do dia! 

    O banco era um alvoroço. Gente falando grosso. Idosos inconformados. Atendentes mal humorados. E as portas giratórias travando a fila numa coleta rotatória de chaves e celular. Tiravam também a paciência e os nervos do lugar.

    O Nícolas não estava nem aí. Ele queria era contar para todos ali, o sabor do amor que sentia. Que se misturava com arroz, feijão e batata frita. Prato feito. Perfeito. De mãe! Carinho expresso e explícito. De quem atendeu seu pedido. Como as conchinhas catadas uma a uma na praia. Que valiam bem mais que dinheiro, notebook ou celular. Sua mãe lhe deu seu tempo. Seu peito. E até as conchinhas do mar.

    Seus olhos vibravam acesos no sentimento imenso que ele tinha pra contar. 

    E quando eu já ia embora, ele saiu correndo me agarrando outra vez...

    - Eu me esqueci! Ela também fez um ovo! 

    E seus olhinhos alegres se estalaram... de novo!



                       *                              *                               

     

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    quinta-feira, 17 de abril de 2025

    ELA VENCEU!



    Tem um bonde que passa no Centro turístico da cidade. No último passeio pude ver, com tempo e detalhes, as velhas casas e armazéns do século passado. Paredes fortes e espessas. Algumas frontarias azulejadas. A maior parte desses imóveis, abandonada. Só vestígios do que já foram. Pedaços de antigas paredes e partes de telhados desabando. 

    No meio do desalento, mudas de plantas saltavam das paredes de concreto. Com seus caules verdes eretos. E no chão, uma flor amarela me olhava com alegria e espanto!

    A vida surgia das entranhas da rua. De cor viva e pura. Delicadeza que fura. Raízes fortes que romperam  estruturas e pelas frestas, espertas, chegaram à luz. Até nas ruas de trilhos, no vão dos velhos paralelepípedos, as flores heroicas saltavam do chão, feito primavera em explosão. 

    Lembrei da minha lágrima de cristo... Tentei por diversas vezes plantar trepadeiras no canteiro da casa onde morava. Nenhuma delas vingava. A tumbérgia não resistiu. Tão pouco, o sapatinho de judia. Até o maracujá foi se agarrando e cresceu, deu dois frutos e feito a camélia caída do vaso, morreu.

    Num dia inesperado, num pequeno buraquinho entre o cimento e a madeira da pilastra ela surgiu... Primeiro, um broto pontudo despontou. Depois uma folhinha. Mais outra. E outra mais vingou. Em poucos dias, alegres florinhas brancas de pistilo vermelho já se enroscavam no telhado cinzento e descorado. 

    De onde veio a lágrima, silenciosa e persistente? As plantas são mais fortes que a gente, de certo. Suas raízes rasteiam. Volteiam. Não desistem. E se embrenham furando o concreto. Rompendo o asfalto e o vazio como no velho centro, em seu quase mortal esquecimento. 

    Foi naquele buraquinho do meu canteiro, estreito e pequeno, que surgiu e cresceu exuberante a minha lágrima de Cristo. Bela. Singela! Regada e nutrida com tudo que precisa.
    Água. Luz. E o sal... da terra!






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    sexta-feira, 11 de abril de 2025

    A FEIRA, CONTINUA LIVRE

    Havia um tempo que eu não ia à uma feira livre. 

    Ela continua livre. Com suas cores e humores. De ponta a ponta. Dos peixes às flores. 

    De pronto, um sujeito tocava jazz no saxofone. Na placa não tinha seu nome, mas a frase: “Vivo de arte!”.  Parei uns instantes, em respeito e solidariedade.

    Caminhar pela feira foi visitar a infância. Grudada na saia de alguém, para não me perder. Lembrar onde estava o melhor preço, voltar tudo lá do começo. Bater com o calcanhar na rodinha do carrinho de uma senhora. Vir carregada de frutas saltando da sacola.

    Lembro do cheiro doce da cana moída, da laranja descascada pelo moço do facão, das mãos de minha mãe escolhendo abacate com um critério que só ela entendia. O barulho dos pregões me assustava e encantava ao mesmo tempo. Cada banca parecia um palco, cada feirante, um personagem. Eu, pequena plateia, caminhava com olhos atentos.

    Tinha um moço que vendia queijos e fazia piadas com as clientes. Dizia que queijo bom era igual abraço de mãe: firme por fora, macio por dentro. 

    E tinha a barraca das fitas de cabelo e das miçangas coloridas, onde eu parava para olhar. Às vezes ganhava um mimo de criança. Noutras, voltava apenas com a lembrança.

    Tanta coisa de magia a feira ainda tem. Mandioca cortadinha. Melancia em pedaços. Bananas em dúzia num cacho - e mais duas de presente! -  grita alto o feirante, alegremente. E tem pano de prato de algodão, tampa de boca de fogão. Alho descascado. Raízes, condimentos e extratos.

    Muita coisa vem em saquinho. Verduras e legumes já cortadinhos. Três por dez reais! No final, se leva um a mais. Dez é o pastel também. Parei para reabastecer.

    Um homem de pernas arqueadas precisou sentar em dois banquinhos. E num espaço pequeno, dois namorados comiam juntinhos. Um de carne e um de queijo. Misturavam sabores. Davam beijinhos.

    No final da festa, um feirante com pinta de artista cantou alegre e bem alto uma versão do sucesso de Bruno Mars...
    - Alface lisa, alface crespa... couve flooooorrrr!


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    QUERIDA, ENCOLHI OS CHOCOLATES!


                                          

    Não é só uma impressão. Amarga. Os chocolates diminuíram. Foram reduzidos e tornaram-se maldosamente pequenos. 
    Quem não lembra das barras antigas? Gordinhas, com vários gomos? O Lingote de chocolate que vinha num papelzinho de seda dentro da embalagem amarela? Já era. Agora é uma casquinha magrela.  
    E as moedinhas de chocolate? Eram da largura das patacas de cinquenta centavos.  Agora, não passam das de cinco! Coisa de sovina. Mesquinhez de Tio Patinhas.  
    Os bonbons também encolheram. O meu cerejão, virou cerejinha. E os chocolates de marcas famosas foram humilhados e cortados impiedosamente pela metade. Que maldade!
    Temos menos cacau e mais beleza. Ovos lindos, enormes e cheios de latex e leveza! A parede de chocolate cada vez mais fina lembra uma parafina. E tem sempre um brinquedinho lá dentro para dar mais peso. Até os coelhos ameaçaram greve geral! Não são obrigados a transportar brinquedos. Isso é coisa pro Natal. 
    A culpa pode não ser dos chocolateiros, nem tão pouco dos cacaueiros. Talvez a falta de dinheiro da população... A indústria sacou e tudo miniaturizou. A gente não percebe e paga ainda mais caro, levando a metade da tentação. Os ovos mais pesados com nozes e castanhas recheados? Só para filhos de abastados.
    Os chocolates diminuíram e ninguém bate panela. 
    Por isso, nesta Páscoa farei diferente. Comprei um panelão gigante. Vou derreter chocolate branco e preto, sem usar conservante. Farei um ovo caseiro gigante de uns cinco ou seis quilos e meio! Vou me lambuzar por inteiro, sem gastar muito dinheiro.
    Vou avisando... é só um devaneio. 
    Tem gente já encomendando pelo whatsapp o meu ovão de chocolate. 
    Novos tempos!
     
     
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