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quarta-feira, 13 de março de 2024

TRÊS APITOS... E UM TALVEZ

Um cheiro leve de maresia e a atmosfera úmida no ar. 

Algumas quadras à frente, o pier do pescador juntava gente. Moradores e turistas à espera de ver a despedida dos grandes navios de passageiros que partem mar adentro para breves ou longas temporadas de cruzeiro. O som do apito longo soa três vezes...

Dizem que não é bom ficar a ver navios. Procurei o motivo da expressão. Descobri uma lenda portuguesa de mil e quinhentos anos atrás, de um tal Dom Sebastião que desapareceu no mar bravio. Fiéis teriam seguido o rei até o alto de Santa Catarina, em Lisboa, esperando sua chegada. Ninguém nunca mais o viu. Ficaram eternamente a ver navios. Talvez seja uma boa explicação. Pois sim, pois não?

Quando os navios passam em frente ao pier, os lenços brancos se agitam ao vento em volteios e acenos. Alguns tentam reconhecer ao longe seus parentes. Muitas vezes, nem sequer conhecem os passageiros que saem das cabinas para serem saudados nas áreas externas do navio. Não importa. Eles retribuem. A ideia da conexão humana é terna. Ter alguém à vista. Um amigo com sorriso. Um amor à espera.

O som dos três apitos ecoa  novamente no ar da partida, embalando nossa alma entretida no rastro ondulado e devagar. Quilha cortando as ondas. Até que a curva da primeira montanha vai escondendo o navio na imensidão do mar.

Uma moça passou correndo na calçada, fones de ouvido, ensimesmada.  Não viu o navio virando a esquina, nem o pier, nem a gente que acenava. Não viu nada.

Talvez seja bom nada ver. Ando com excesso de adeus. Perdi muitos sonhos e amigos meus. Vou tremulando todos os dias lenços brancos e ouvindo ecos do apito de um navio que insiste em partir no entardecer. 

São apitos longos. E eles são três... um nunca mais, um vou voltar ... e um talvez!

 

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 Foto gentilmente cedida pela amiga Celia Loriggio, tirada da Ponta da Praia em Santos.


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quarta-feira, 6 de março de 2024

REMÉDIO OU FEITIÇO?



Ela deve ter sido bruxa ou feiticeira. Umas dessas velhas curandeiras. Neide tem sempre uma receita certeira. Tornou-se enfermeira. Mas há um contrassenso imenso na escolha da honrosa profissão. Ela não gosta de remédio e tem horror a injeção.

No hospital é exímia profissional. Enfermeira padrão. Ninguém morre em suas mãos. Fiel aos protocolos. Quando é preciso leva o paciente no colo. Mas em casa é só pajelança. Sem o aval da ciência ou indicação de bula. Diz que a natureza é quem cura.

Trevo pra enriquecer. Sal grosso debaixo da cama pra afastar fulana. Alecrim de rama pra dinheiro e fama. Alho contra inveja e maldade. Orégano nas costas pra trazer felicidade.

Na semana em que tudo me deu errado, encontrei a Neide na porta do mercado. Deu logo diagnóstico e mandou seu recado: joga fora o bromazepan. Isso é coisa do diabo!

Depois benzeu com a mão a minha testa e me deu um alecrim. No fim, mandou queimar louro na panela de barro. Obediente como sempre, fiz o preparo. O fumaceiro invadiu a cozinha e o cheiro forte saiu por debaixo da porta e chegou até a vizinha. Respirei com os olhos lacrimejantes aquele remédio de amor, cheia de fé e sem desdenhar. Vai que dá!

Passou um mês e minha vida retomou ao seu normal. O estresse pontual foi saindo aos poucos como haveria de ser. Claro que lhe avisei, dando créditos à receita, afinal Neide é certeira. No tempo da Covid não negou ajuda, nem fez desdém. Na enfermaria salvou mais de cem. Agradecida, chegava feliz contabilizando mais uma vida.

Neide não imagina o ser humano que é. E o poder que tem. O louro queimando é seu amor se espalhando. Um outro tipo de remédio... que também faz bem.


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